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1968 foi“muito ruim”, diz historiador Carlos Fico

Apesar de associado a “atitudes libertárias”, ano foi marcado por mortes e forte repressão

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O período de manifestações pacíficas no Brasil após a morte de Edson Luís durou pouco. Ganhou densidade graças à cobertura de fotojornalistas como Evandro Teixeira. A classe média foi às ruas. Mas o ano “terminou mal”, veio o AI-5, e o “milagre econômico” que beneficiou este grupo. Apesar de ser associado a “atitudes libertárias”, 1968 foi “muito ruim”. A leitura é do historiador Carlos Fico, professor da UFRJ e autor dos livros “Além do golpe — Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar” e “O grande irmão — Da Operação Brother Sam aos anos de chumbo”, em entrevista ao JB.

Quem é Edson Luís na memória política brasileira? 

Virou um mito. Estudante secundarista pobre, Edson dormia naquele restaurante, sobrevivia em troca de pequenos serviços. O novo bandejão do Calabouço tinha sido inaugurado em agosto de 1967, na Avenida Marechal Câmara, no lugar do velho que existia perto do aeroporto Santos Dumont desde 1952. Os estudantes protestavam contra a falta de acabamento do novo Calabouço – obra feita às pressas pelo governo Negrão de Lima. Em janeiro de 1968, em um desses protestos, os estudantes conseguiram escorraçar o DOPS. Mas, em março, os agentes voltaram para se vingar com o reforço da PM. Foi nessa ocasião que Edson Luís foi baleado, pouco tendo a ver com os protestos. A partir daí, as manifestações, tipicamente estudantis, ganharam contornos políticos mais amplos, incrementadas pelos adeptos da luta armada – que usavam o movimento universitário e secundarista para propagar sua causa. 

Qual o significado das grandes mobilizações que se seguiram à morte dele? 

Muitos confundem aquelas manifestações com a luta armada – é curioso isso. Não há um evento sobre a ditadura militar no qual as fotos de 1968 não sejam exibidas. Eram protestos pacíficos, passeatas, mas muita gente vê aquelas manifestações como luta armada. O “Correio da Manhã” tinha feito um bom investimento em fotojornalismo, contratou Erno Schneider (Prêmio Esso com a foto do Jânio Quadros com os pés trocados). Em 1968, o “Correio” estampou a agressão da PM ao fotógrafo Alberto Jacó, do “Jornal do Brasil” (com foto de Alberto França, do “Correio”, que a cedeu ao JB). Então, havia a possibilidade dessa cobertura fotojornalística, que o Evandro Teixeira exploraria com maestria. Ainda não havia a censura que o AI-5 inauguraria no final do ano. Os fotógrafos foram importantes: tinham contatos com os estudantes, sabiam onde as passeatas iam eclodir – antecipavam-se. Criaram uma iconografia prevalecente, de algum modo heróica, romântica. As manifestações duraram pouco, de março a junho, mas ganharam densidade por causa da cobertura jornalística. 

Relatos de colegas de Edson Luís gravados para o documentário “Calabouço: um tiro no coração do Brasil” destacam que a morte dele foi o estopim para que a classe média se juntasse ao movimento de repúdio à Ditadura. Por que depois, ao longo dos anos, este movimento se esvaziou? Como vê este momento em que a classe média brasileira se mobiliza a partir da morte de um estudante de uma família pobre do Pará? 

A classe média sempre teve posição ambígua. Parte expressiva havia apoiado o golpe de 1964. A carestia do final do governo Castelo Branco a empurrou para a oposição. O assassinato de Edson Luís a impactou, sendo famoso o cartaz que dizia “Mataram um estudante, podia ser seu filho”. A violência da repressão também levou a classe média para as ruas naqueles poucos meses (justamente por causa das imagens fortes publicadas pela imprensa). Entretanto, 1968 foi o ano que terminou mal, com o AI-5, mas, apesar disso, nos anos seguintes viria o “milagre econômico” e a classe média beneficiou-se dele, apoiando o governo do general Médici. 

O que o ano de 1968 significa na história política e social brasileira? 

Há forte memória que associa 1968 a atitudes libertárias. Concretamente, entretanto, 1968 foi um ano muito ruim, com mortes de estudantes, assassinatos de militares, prisão de ex-presidente, ataques a teatros, sequestro e espancamento de artistas, roubo de armas militares, etc. O movimento estudantil, radicalizado por lideranças simpáticas à luta armada, frustrou-se com o AI-5. Muitos jovens inexperientes se tornaram facilmente recrutáveis pelas organizações que se autodenominavam revolucionárias. Vários seriam presos a partir de 1969.

A radicalização da repressão aos opositores do regime levou a vários episódios de violência política, como as mortes de Carlos Marighela e Wladimir Herzog. O senhor vê algum paralelo entre o contexto da época e a situação atual no Brasil? 

Não vejo paralelo entre 1968 e 2018. Havia muitas expectativas naquelas manifestações de março a junho, que logo se frustraram, além de serem reprimidas com violência. A frustração e a violência marcam a história política brasileira, sobretudo do ponto de vista da esquerda. Ambas estão presentes hoje. O grande diferencial é que, agora, vivemos uma democracia, apesar de todas as dificuldades. Nosso desafio é evitar qualquer descaminho institucional.

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