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Uma pena inadmissível

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No seu mais recente lance para confirmar a disposição de ferir temas adormecidos no seio da Igreja, o Papa Francisco entra agora reformando o catecismo católico, ao garantir, sem meia palavra, que a pena de morte é algo inadmissível para o olhar cristão. O que significa contrariar vertentes do pensamento, religioso, ateu ou agnóstico, que consideram o castigo capital como recurso mais adequado para fazer frente à violência que grassa pelo mundo. E exatamente pelo fato de ser um tema sempre contemplado com apaixonadas divergências, é provável que o pontífice tenha contribuído para que se retome a velha discussão, não apenas nas suas prelaturas como fora delas. 

De quando em vez o assunto é exumado, sem que se desconsidere o fato de prosperar, visivelmente, entre os que não reconhecem eficácia nessa condenação; o que se confirma por ser, na atualidade, um recurso pouco adotado, a não ser na China, Afeganistão, Irã, Iraque e nas ditaduras, essas sempre dispostas a aplicá-lo, por não saberem conviver com os contrários. Nos Estados Unidos, onde sua aplicação caiu vertiginosamente, só não desapareceu por se tratar de uma confederação. Lá, o risco de morrer numa câmara de gás ou com injeção letal na veia não conseguiu reduzir os índices de crimes; na verdade, pioraram, porque as eliminações individuais caíram de moda, dando lugar às coletivas. Naquele país, onde a aplicação da pena geralmente ganha repercussão internacional, não foi possível sequer manter antigos níveis de criminalidade. 

O desenterramento do debate pode ocorrer até mesmo no Brasil, onde são muitos os adeptos do talião, como remédio para os assassinos de alma empedernida, ou para a eliminação dos responsáveis pela violência urbana. Enganam-se. Bastaria lembrar que no Rio de Janeiro elimina-se, sumariamente, à revelia de juízes e tribunais, e nem por isso o carioca vive melhor. 

A última vez em que a pena de morte foi largamente discutida no país ocorreu em 1991, quando se pretendeu um plebiscito para a sociedade se pronunciar. Com o equívoco de sempre: a pena capital vira assunto favorito sob o clima de intensas comoções resultantes de crimes bárbaros. 

(Não foi outro o ambiente que nos levou ao maior erro judiciário de todos os tempos, o enforcamento do fazendeiro Manoel Coqueiro, de Macaé, em 1855, acusado de ter assassinado uma família, e, tempos depois, ficou provado ter ele sido vítima de embuste. Não havia cometido o crime). 

Primeiro item para considerá-la logicamente inaceitável é que uma pena irrecorrível só se decretada por um tribunal infalível, como se lê no mais importante libelo sobre o tema que a imprensa produziu, exatamente neste JB,  em outubro de 1969,  com a assinatura do pensador católico Alceu Amoroso Lima. Nem teria cabimento o pretexto da defesa da sociedade, porque contra ela o mal já foi praticado, e a morte do criminoso não faz reparos em relação à vítima. Uma remota analogia falar em legítima defesa social. 

Há um detalhe com todo direito de cercar de dúvidas esse tipo de condenação. Ela tem sido, ao longo da História, sistematicamente defendida por extremistas, sejam da direita ou da esquerda, fartamente empregada como resposta às contestações. E nada mais prejudicial à saúde da democracia que as soluções extremadas. 

Papa Francisco não hesitou em passar por cima de grandes nomes da Igreja, que admitiram ou ainda admitem a pena de morte em nome do bem comum. Como entendia, já distante, no século 13, Santo Tomás, o Doutor Angélico; e mais recentemente, em nossos dias, como entendeu o cardeal do Rio, dom Jaime Câmara, que a via como remédio necessário, com a ressalva de “um grande critério pelos aplicadores”. 

Mas o pontífice deve saber ou sentir que buliu com uma questão longe de ganhar os louros da unanimidade. Tem certeza de aplausos e apupos. Como sempre foi e não deixará de ser.