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Signatário do Pacto de Migração da ONU, Brasil enfrenta desafios e deve recuar em governo Bolsonaro

Marcelo Camargo/Ag. Brasil. -
Indígenas venezuelanos, da etnia Warao, são acolhidos no abrigo Janokoida, em Pacaraima, em Roraima
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O Pacto Global de Migração da ONU, aprovado na última segunda-feira em Marrakech, no Marrocos, por cerca de 160 países, estabelece uma tarefa desafiadora para o Brasil, um dos principais signatários. A resolução, que não é vinculante, propõe uma série de metas que já são cumpridas por várias nações, mas que soam distantes da realidade brasileira. Apesar das dificuldades no acolhimento dos imigrantes, o futuro ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, confirmou a decisão de retirar o país do pacto tão logo o presidente eleito, Jair Bolsonaro, tome posse em 1º de janeiro.

Por outro lado, o anúncio de saída do Pacto Global, no mesmo dia em que o governo Michel Temer se juntou aos demais signatários em Marrakech, alinha o Palácio do Planalto à política migratória linha dura da Casa Branca ao criticar políticas migratórias de acolhimento, embora o futuro chanceler tenha destacado, pelo Twitter, que o país continuará recebendo venezuelanos, mas sob o comando de Brasília.

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Indígenas venezuelanos, da etnia Warao, são acolhidos no abrigo Janokoida, em Pacaraima, em Roraima (Foto: Marcelo Camargo/Ag. Brasil.)

Para a doutoranda em Relações Internacionais da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) Luisa Chaves, apesar da recusa do próximo governo em permanecer no acordo transmitir um recado, o respaldo jurídico e legal do país deve garantir segurança aos imigrantes. “Legalmente falando, a não ser que o governo altere as leis já definidas, a saída do Brasil do pacto não deve impactar muito a vida dos imigrantes por conta da Lei de Migração, de autoria do atual chanceler e senador licenciado, Aloysio Nunes, aprovada em 2017”, avalia Chaves. “Há, no entanto, um problema operacional. Recebemos relativamente bem, diferente de países onde ficam confinados até receber a autorização do refúgio, mas não temos um organismo coordenado”, aponta a acadêmica.

Recentemente, o drama dos fluxos venezuelanos exerceu protagonismo na campanha presidencial e nas corridas eleitorais estaduais, especialmente na Região Norte. A crise expôs a deficiência da aplicação das políticas públicas brasileiras de acolhimento, em especial se considerada a proporção de imigrantes do país vizinho que cruzaram a fronteira. Segundo as Nações Unidas, o Brasil recebeu 50 mil indivíduos - apenas 2% dos 2,3 milhões de venezuelanos que fugiram da crise humanitária se estabeleceram no país. O impacto em outros países sul-americanos, como Colômbia, Equador e Peru, foi muito mais intenso.

Para Chaves, as dificuldades brasileiras diante de um fluxo bem menos desafiador do que em outros países e continentes refletem a falta de um planejamento coordenado. “O principal problema é a falta de uma ação centralizada. Não há um órgão que trate da imigração de forma mais coesa, como na Argentina, que há anos tem um Comitê Nacional de Imigração. Acabamos sobrecarregando esses estados que recebem os imigrantes. Não são os estados mais ricos e não há um processo articulado para espalhá-los pelo Brasil, concentrando em uma mesma cidade com poucos recursos e estrutura, dificultando o processo de integração”, pondera.

Ainda de acordo com a acadêmica, a discussão da Lei de Imigração no Congresso Nacional ano passado expôs a divisão política em torno de duas vertentes: a percepção do fenômeno migratório como parte da segurança nacional, da qual o presidente eleito foi um dos principais expoentes, outra alinhada com a tradição do Itamaraty e mantida no governo Temer, que entende o acolhimento de imigrantes como parte de um instrumento de direitos humanos.

Com a lei de 2017, imigrantes que solicitam refúgio dispõem do direito de serem inseridos no mercado de trabalho e no sistema educacional. Na prática, porém, a situação é bem diferente, segundo Bruno Magalhães, pesquisador de pós-doutorado do Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (IRI/PUC-Rio).

“No Brasil, temos a política formal de concessão da Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS), acesso ao Sistema Universal de Saúde (SUS) e matrícula na rede escolar, mas há uma distância entre o compromisso e a prática. O Pacto da ONU fala em monitorar as promessas estabelecidas na resolução. O Brasil oferece serviços muito aquém da demanda por acesso. Sequer temos dados a esse respeito. Não temos dados da inserção de imigrantes no sistema educacional brasileiro, por exemplo”, critica Magalhães.

O acadêmico acrescenta que algumas informações disponíveis sobre o fenômeno migratório no Brasil vêm de fora. “O acordo, por exemplo, sugere que os países adotem metas para coibir o tráfico de seres humanos. Há estatísticas produzidas pelo Departamento de Estado dos EUA e pela ONU que sugerem que o Brasil é um país que concentra grande trânsito de pessoas traficadas, incluindo mulheres, crianças e transgêneros vendidos para prostituição na Europa e em outros países do mundo”, diz o professor.

“Estima-se que seja o caso de 400 mil pessoas na América Latina em 2018, mas o Brasil não tem um número”, lamenta. “Ainda não temos condições de produzir um número sobre pessoas traficadas. Isso é um problema para o Brasil respeitar o Pacto Global sobre Migração, mas já era uma questão posta ao país em acordos que não estávamos cumprindo, como as Metas Sustentáveis do Milênio”, acrescenta Magalhães.