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Sectarismo ou compromisso?

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A ampla publicidade conferida à lista de Fachin, contendo nomes mencionados na delação premiada em que 77 (ex)executivos da Odebrecht admitem terem financiado campanhas eleitorais com caixa dois para praticamente todos os partidos  e pago propina para a realização de obras públicas contratadas pelo Estado, atingiu em cheio a classe política.

Apesar de Fachin ter autorizado o início das investigações juntamente com a divulgação dos envolvidos, o que em tese não condena nenhum citado, a abordagem escandalosa e ideologicamente interessada que tem circunscrito a Operação Lava Jato faz com que a mera presença nominal na lista de delatados já complique a situação dos envolvidos. A grande mídia e as redes sociais incitam o pré-julgamento e o ódio público antes de qualquer ação formal da Justiça e do direito de defesa dos acusados, o que seria imprescindível em se tratando de vigência do Estado de Direito. Essa postura sectária aponta para um horizonte no qual estarão jogados pelo ralo o bebê (o sistema político e a ordem constitucional), e a água do banho. Se a direita paneleira e das ruas estivesse interessada em fazer agora com o governo Temer o que fizeram com Dilma em 2015 e 2016, o apocalipse institucional estaria plenamente configurado. Porém, como a Globo e os movimentos liberal-conservadores (MBL, Vem pra Rua etc), não tem interesse em destituir Temer, o presidente segue governando, atolado na lama, mas tentando prosseguir na implementação de seu projeto ultraliberal e antinacional, para o que conta com o precioso apoio do mercado.

Grande parte do problema do sistema político está no antigo padrão de financiamento empresarial das campanhas eleitorais que a grande mídia sempre ou defendeu ou se omitiu sobre o assunto, como se omite até hoje ao não analisar as causas dos problemas investigados nas delações. O Jornal Nacional e a Globo News não dizem uma palavra sobre o erro que era o financiamento empresarial, mas se esforçam para a criminalização dos partidos, especialmente do PT, ao invés de se preocuparem com o aperfeiçoamento das instituições democráticas. Não à toa, no passado, as Organizações Globo apoiaram o golpe militar de 1964. Para o liberalismo extremado, sobretudo em contexto de crise, a política atrapalha a economia, a democracia atormenta o mercado e corrupção é plataforma política para encobrir interesses de outra ordem.

A escandalosa implementação da Operação Lava Jato, mormente agora após a divulgação do conteúdo da “delação do fim do mundo”, está colocando o país em um problema insolúvel, irracional e destrutivo, enraizado nos pressupostos idealistas e nos interesses materialistas-neoliberais que a motivam. Do ponto de vista de seus pressupostos idealistas, trata-se de uma cruzada política de purificação nacional contra a corrupção, conduzida por elites burocráticas não eleitas, ou seja, sem mandato político e vocação política. Querer resolver, em uma tacada só e por meio de abusos aos direitos civis, as ligações irregulares entre o empresariado e a classe política sem se preocupar com a ordem econômica e a ordem política tem conseqüências destrutivas, conforme estamos vendo. Como ensinou Weber, uma coisa é a ética da convicção, que costuma pautar a conduta individual, outra a ética da responsabilidade, mais consequencialista, que pauta a ação de coletivos, grupos, partidos e, assim, instituições políticas, tais como partidos e Estados. Em meio a tantas fraquezas humanas, querer aplicar o critério da ética da convicção, sem mediações, às relações políticas de caixa 2 é uma inconsequência que está custando muito caro à nação. A orientação mais sensata seria buscar um compromisso entre ética e política que não prejudicasse tanto o processo democrático e o desenvolvimento econômico nacional. Como se sabe, o ótimo pode ser inimigo do bom, o bom do regular e o regular do péssimo. No entanto, desde o impeachment, a opção de várias elites que o apoiaram foi sacrificar a democracia, diminuindo seu teor nas instituições e na cultura política, e a economia. A mesma lógica sectária e irresponsável em relação ao caixa 2 foi aplicada para avaliar as chamadas pedaladas fiscais que Dilma teria feito.

A coalizão que apoiou o impeachment aproximou dois “partidos” principais, ambos liberais, pois não divergem quanto ao programa de Estado mínimo (emenda do teto de gastos, concessão ampla da exploração do pré-sal às multinacionais, terceirização, reforma trabalhista e reforma da previdência): o partido do mercado e o partido anticorrupção. Eles abrigam contradições internas. No partido do mercado, além dos capitalistas nacionais e estrangeiros, há 68 políticos da situação mencionados na lista de Fachin, distribuídos no PMDB, PSDB, PP, PSD, DEM etc. 24 nomes da lista do ministro do STF são de partidos da oposição. O partido do combate à corrupção é o Partido Operação Lava Jato (POLJ), apoiado, principalmente, na grande mídia e na direita que hoje saiu das ruas. Algumas forças ocultas mais irracionais e ferozes do mercado o respaldam. O principal objetivo desse partido é impedir que Lula seja candidato em 2018 e implodir o PT. Para tanto, o POLJ está disposto a sacrificar a imagem pública de algumas de suas lideranças no Congresso Nacional e nos partidos formais, como Aécio Neves, José Serra, Geraldo Alckmim etc, pois, sendo Lula um peixe muito grande, é arriscado politicamente devorá-lo sem garantir a impressão de que a suposta justiça esteja sendo aplicada de modo minimamente igual para todos.

Para prosseguir em sua seletividade, o POLJ, através da grande mídia, seu braço de comunicação, procura, em alguma medida, incitar a polarização do país entre dois partidos: o da corrupção, representado por todos os partidos formais e políticos envolvidos nas disputas de poder e influência no Legislativo e no Executivo, e o da honestidade, representado por ela própria, obviamente, e pelas elites burocráticas privilegiadas do aparato jurídico-policial. O partido da auto-declarada honestidade visaria abrir o caminho para que o mercado, tido como mecanismo neutro e aberto aos interesses de todos, possa ser o eixo de coordenação do país. Na verdade, tal polarização é falsa, pois o que está em questão não é nem a honestidade e nem a corrupção, e sim o confronto entre dois projetos: um de defesa dos interesses da financeirização da economia e da maior abertura do mercado interno às multinacionais, caso do "partido da honestidade", e outro de defesa dos interesses do setor produtivo nacional e da maioria da população, caso do partido espertamente rotulado como o suprassumo da corrupção, mais especificamente o PT, cuja maior liderança é Lula. 

Então, o que se observa é um descolamento, no interior das forças de direita que apoiaram o impeachment, entre, por um lado, as elites mais dispostas a prosseguir na cruzada de salvação nacional, para viabilizar a condenação e eventual prisão de Lula e aprofundar no caminho da dependência nacional e, por outro, as elites políticas que garantiram o impeachment da presidenta Dilma Roussef. Há, no momento, uma disjunção na direita entre sectarismo e compromisso. Fala-se que algumas forças políticas da direita estariam buscando compromisso com a esquerda. Essa rota disjuntiva aponta para o que tem sido chamado de golpe dentro do golpe. Talvez ela sirva apenas para tentar criar um clima que favoreça o intuito de se livrar de peixe grande e recolonizar o país. Talvez ela ameace ainda mais o processo democrático brasileiro, hoje bastante ferido. Os progressistas estão retomando a ação, pois as reformas de Temer são impopulares, e não vão assistir passivamente à tentativa de crucificação de Lula. A tragédia nacional continua corroendo a todos. Sem política não há solução. (Agradeço ao apoio de Felipe Maruf Quintas.)

Marcus Ianoni é cientista político, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF), ex-pesquisador visitante da Universidade de Oxford e estuda as relações entre Política e Economia