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Descaminhos, desagregação e deboche

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Em obra voltada para a compreensão de um tempo de mudanças e contrarrevolução, Guy Debord apresentou alguns conceitos visionários sobre o comportamento de uma sociedade despossuída de referências filosóficas, escrava do aqui e agora, situação de dominância do efêmero, na qual o culto ao consumo, na forma de “espetáculo”, passou a ser um louvor ao transitório e ao supérfluo. A representação de uma realidade onde o “ser” cedeu espaço ao “ter”, que, travestido do “parecer” com, forneceu os preceitos para a categorização de uma nova classe social, política e econômica. 

A lógica desenvolvida por Debord pode ajudar a desenvolver algumas reflexões sobre a realidade dos dias de hoje, com uma tentativa de criação de instrumentos analíticos que auxiliam a identificação de um fenômeno recente, ajudando, ainda, a identificar a origem do sentimento de repulsa ao processo civilizatório por parte de um segmento da sociedade, da mesma forma que o crescimento do apreço às tentações autoritárias manifestadas na negação da política, enquanto local de busca de consenso e da arte de negociação e resolução de conflitos. 

O hoje está repleto de sinais, ruídos e cacofonias, e traz, em comum, o uso, por esse grupo do recurso de urros selvagens, um esboço de palavras de ordem e convites à radicalização. 

Não importa muito a reapresentação das demandas grupais, pois há um elemento em comum que une a inquietude de segmentos da população em vários continentes, desde os eleitores irritados com a globalização até os portadores de uma revolta contra os estrangeiros, refugiados, imigrantes, agregando, por fim, os excluídos das políticas de inclusão social. 

Esse contingente de atores forma o que podemos chamar de seres  híbridos,  representantes de uma classe de remediados transformados em símbolos uma nova classe média envelhecida - órfãos de um passado tido como glorioso e reféns de um presente sem esperança. 

Tal grupo forjado nos últimos 20 anos, para ser compreendido, exige a criação de novos arranjos teóricos e a releitura de conceitos antigos. Para tanto, há a necessidade de ferramentas e também do auxílio de elementos sociológicos que ajudem na conceituação e identificação das bases para a representação da vontade política e das fontes de poder do que poderíamos denominar como formas de construção da vontade de poder dos “sem-classe”, contingente da sociedade, que, outrora fragilizados politicamente, foram compelidos a meros coadjuvantes de um enredo, em que, a cada movimento do processo de produção e contração do mercado de trabalho tradicional, traz, como consequência, um aumento nas perdas de status e relevância econômica. 

Herdeiros de uma situação  repleta do desfrute de privilégios, entendidos como direitos adquiridos, reagem ao que denominam como tentações esquerdistas, nutrindo um sentimento de ameaça pelo que caracterizam como o avanço de um tempo de populismo de uma esquerda demagógica, cujas práticas políticas, a seu ver, são ancoradas em práticas delitivas e corruptas, sendo tais desvios responsáveis pela fragilização e deterioração da sua realidade - ações que levaram à fragmentação de “seu” mundo, cerceando o pleno exercício e o desfrute entendidos como  vantagens e privilégios. 

O chamado fetiche da vontade/poder,  ganha uma nova variante ao incorporar elementos inseridos em uma linguagem repleta de alegorias, marcada por um profundo reducionismo, palavras - símbolos -, onde prevalecem as manifestações de “opiniões”, que, no geral, encarnam sinais de um discurso repleto de elementos simbólicos nos quais predomina uma indignação profunda contra valores tidos como retrógrados, tais como a democracia de massas, justiça, garantias individuais, formas de representação popular, partidos políticos, organização da força laboral, educação inclusiva e, principalmente, o pensamento iluminista, nessa nova vertente iconoclasta, descortina-se como uma peça em que os atores, a exemplo de tribos e torcidas organizadas, apresentam de forma consciente “seus desejos reprimidos”, sem retoques ou constrangimentos. 

A manifestação deste grupo, no geral, tem, como bandeira, um conjunto de raciocínios fragmentados, onde pregam a necessidade de pôr um fim às chicanas da politicagem rasteira oriundas do “câncer” da corrupção dos seus inimigos de classe, embalados por um discurso de moralismo canhestro, puritano e raivoso. Esses “indignados” associam o funcionamento do sistema de garantias individuais e os preceitos universais de respeito ao devido processo legal e ao estado democrático como desvios e doenças, que só tem a serventia de funcionar como um meio para atrasar o cumprimento da verdadeira justiça e uma forma de criar obstáculos ao pleno exercício dos vingadores e o  necessário rigor punitivista na execução penal.

A ação dos indignados

Libertos dos grilhões da autocensura e das barreiras psicológicas impostas pelo pensar consciente, os “indignados” escolhem alegorias e adereços para expressar uma compulsão ao descaminho, local onde predomina a identificação do atraso e da culpa por uma situação econômica e política que permite aos inferiores e subalternos dividir o mesmo quinhão e os olhares do poder público. 

Não é à toa que a vontade manifesta desse segmento aflora em uma verve de certo cinismo, despudorado, em que muros devem ser erguidos, onde repulsas ao convívio em comunidades plurais são exacerbadas e o desarme de legislações inclusivas, passam a ser vistos como formas legitimas de “segregação” e reconstrução do novo Estado. 

Em uma simbiose perfeita, maiorias parlamentares são construídas e alimentadas dentro de uma lógica que encarna as demandas de um mosaico de vetores, tendo como resultante um gradiente que aponta para a ausência de compromisso com o eleitor representativo - visto com um pecador, que necessita de castigos para expiação de seus pecados, passando por contrições que exigem a devolução de ganhos -, e obrigatoriamente pelo desmonte dos sistemas de representação de tais interesses.  Uma espécie de vingança contra aqueles que ousaram certo protagonismo na história.

 Não sendo surpresa que as primeiras escolhas de governos que ascendem ao poder, no bojo dessa variante, não sejam  voltadas para a representação do interesse da maioria e sim de um segmento de revoltados apresentados como uma plataforma dita  como “moderna”, na qual repousa como diretriz política a demolição dos elementos de proteção social, ao mesmo tempo em que desenvolvem reformas e desmanches de políticas públicas voltadas para a defesa de direitos, com especial preferência às salvaguardas constitucionais direcionadas para a proteção dos mais velhos, dos trabalhadores organizados e dos carentes de políticas inclusivas. 

Todo esse elenco de ações é executado de forma pueril  alimentado por um conjunto de sinais contidos em uma linguagem que despreza o debate mais amplo dos temas, ao mesmo tempo em que atropela a reflexão   e a negociação política, sendo realizado com fortes doses de deboche e agressividade