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Adriana Ancelmo: as dificuldades de aplicar direitos previstos em lei

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Após segunda reviravolta, o caso da advogada Adriana Ancelmo, mulher do ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, voltou novamente à pauta. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) acolheu, nesta sexta-feira (24), recurso da defesa da advogada e manteve a decisão da Justiça Federal do Rio, que concedia a ela prisão domiciliar. A informação, segundo o G1, foi confirmada pelo advogado de Adriana, Alexandre Lopes de Oliveira. De acordo com ele, o processo de soltura só terá início na próxima segunda-feira (27). Ao contrário do que aconteceu com Adriana, muitas mulheres em condições semelhantes continuam na cadeia. 

Adriana teve a prisão preventiva convertida em domiciliar na semana anterior, sexta-feira (17), pelo juiz Marcelo Bretas, mas não chegou a sair de Bangu 8. Na segunda-feira (20), porém, o desembargador Abel Gomes, do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, atendeu pedido feito pelo Ministério Público Federal (MPF) e revogou a decisão do juiz. Ela está presa desde dezembro do ano passado no Complexo de Gericinó, em Bangu, na Zona Oeste do Rio. 

A lei brasileira autoriza desde o ano passado que grávidas e mães com filhos de até 12 anos tenham a prisão provisória convertida em prisão domiciliar. Apesar disso, o encarceramento ainda é regra. 

“A lógica ainda dominante entre os atores do poder judiciário é a de prisão como regra. E o próprio código de processo penal e constituição indicam o contrario. Precisamos de um convencimento desses atores, para que eles garantam direitos prescritos em lei.”, disse o coordenador de Defesa Criminal da Defensoria Pública, Emanuel Queiroz. 

No Brasil, 6% do contingente de presos são mulheres. No rio, a percentagem é de 10%. Dentro desse número, 80% das mulheres presas são mães. E cerca de 42% das 37 mil presas no país são provisórias, ou seja, ainda aguardam julgamento, situação em que se enquadra a mulher do ex-governador Sérgio Cabral, também preso e investigado por corrupção. Não existem, porém, estatísticas que mostrem quantas delas estão grávidas e têm filhos menores de 12 anos. 

O artigo 318 do código de Processo Penal estabelece possibilidades na qual o juiz pode substituir a prisão preventiva pela prisão domiciliar. O inciso V desse artigo, que é a novidade, estipula a hipótese para a “mulher com filho até 12 anos de idade incompletos”. As alterações no código foram aprovadas pelo Congresso em março do ano passado e ficaram conhecidas como Marco Legal da Primeira Infância. A mudança, como o próprio nome diz, assegura direitos da criança, que vão além da questão materna, como por exemplo, o aumento, por meio do Programa Empresa-Cidadã, para 20 dias a licença-paternidade e a inclusão do inciso VI, que também dá o direito de prisão domiciliar ao homem, “caso seja o único responsável pelos cuidados do filho de até 12 anos de idade incompletos”. 

“Essa mudança aparece muito mais no contexto da preocupação com a criança do que com a presa, e a maior prova disso é a regra se aplicar para o homem”, disse a advogada criminal Maíra Fernandes, acrescentando: “O impacto na criança é enorme, porque, na maior parte das vezes, a família se desfaz. As mulheres são, em geral, chefes de família, responsáveis integral ou parcialmente por seus filhos, e quando existe um companheiro, a maioria não assume essa responsabilidade. Se a mulher é presa em uma situação dessas, com quem a criança fica?”, questionou. 

Apesar das mudanças, a aplicação da lei não é automática, e no Brasil, isso pode significar muito tempo para se efetivar. A Defensoria Pública estadual é um dos principais órgãos que atuam na tentativa de garantir o cumprimento da nova legislação. Emanuel Queiroz conta que uma política interna de atenção especial à mulher encarcerada vem sendo desenvolvida há anos no órgão público, e que nela já foram reduzidas 45% de mulheres grávidas, e 26% de lactantes. Entretanto, a resistência de juízes e do poder judiciário ainda é grande. E o juiz tem, neste caso, a palavra final.

“A dificuldade de aplicação acontece devido a um poder judiciário com atuação muito repressiva, os juízes se veem como agentes de segurança e não como garantidores de direitos. O que percebemos é uma perspectiva punitiva. Tem casos de juízes que aumentam a pena fazendo um julgamento moral da mulher”, afirmou Luciana Boiteux, professora de Direito Penal e Criminologia da UFRJ. 

Emanuel completa: “Com relação a mulheres com filhos menores, a atividade é mais difícil, porque fundamentalmente, uma das peculiaridades do encarceramento feminino é de que elas ficam abandonadas pelas famílias, e isso dificulta a obtenção de documentos para poder justificar esse pedido oficialmente”. 

A obtenção de documentos, ele explica, depende do apoio da polícia civil que deve sinalizar para o juiz e promotor do caso, a fim de que a Seap, Secretaria de Estado de Administração Penitenciária, possa identificar as características que se enquadram nas condições da lei, como a comprovação de filhos menores de 12 anos.  

“A maioria das pessoas aprisionadas provém de famílias totalmente desestruturadas. Cerca de 5% do efetivo carcerário fluminense não possui registro civil de nascimento. A situação é de uma criminalização de pessoas marginalizadas, elas não têm sequer o direito de existir legalmente”, afirmou o defensor público. 

O tráfico de drogas é a principal acusação que leva ao encarceramento feminino, com 68% dos casos. Mais da metade das presas é condenada a penas de dois a oito anos. Maíra Fernandes é advogada criminal e ex-presidente do conselho penitenciário do estado. Ela conta que através de uma pesquisa realizada em 2015 na Unidade Materno Infantil, e no Instituto Penal Talavera Bruce, identificou 70% de rés primárias e 73,2% presas cautelares, ou seja, provisórias. 

“É assustador. Esses números levam ao enorme questionamento da real necessidade dessas mulheres estarem presas. Essa discussão é absolutamente urgente”, alertou. 

Adriana Ancelmo

No caso de Adriana Ancelmo, a prisão domiciliar só seria concedida pela Justiça caso a ex-primeira-dama do Rio comprovasse que o imóvel onde ficará com os dois filhos atenda a requisitos como não ter linha telefônica nem acesso à internet. Além disso, as visitas terão que ser registradas pela defesa. 

“Nesse caso, a decisão do juiz que concedeu prisão domiciliar me parece totalmente perfeita. Fiquei esperançosa de que o caso, por ser midiático, desse visibilidade para o tema, e fosse amplificado para outras presas”, felicitou-se Maíra. 

No despacho, o desembargador que vetou a decisão de conceder a prisão domiciliar citou a expectativa que poderia criar para outras demais mulheres presas até hoje e não contempladas pelo benefício da lei, “pois a práxis vem demonstrando não confirmáveis, para centenas de outras mulheres presas na mesma situação da acusada no sistema penitenciário, haja vista que o histórico público e notório de nossa predominante jurisprudência, e estampado ora em matérias jornalísticas, ora em estudos acadêmicos, é o de que em regra não se concede prisão domiciliar automaticamente às diversas mulheres presas e acusadas pelos mais diferentes crimes, apenas porque tenham filhos menores de até 12 anos de idade”. 

O relator da Operação Calicute no TRF alegou também que a decisão de Marcelo Bretas, caso executada, criaria expectativas “vãs ou indesejáveis” para a própria acusada e seus parentes “já que pode vir a ser solta e presa novamente caso o recurso do MPF seja provido posteriormente”. Os procuradores do MPF argumentaram ainda que a fiscalização de que Adriana não teria telefone e internet é difícil de ser realizada. 

“Eu fiquei impressionada com a decisão do desembargador, e especialmente pelo fato dele ter feito menção ao caso de outras mulheres não receberem o mesmo beneficio. Democratizar a injustiça não é justo. Eu defendo que se conceda esse direito para Adriana, e que a partir dela, também se conceda para outras mulheres na mesma situação”, acrescentou a ex-presidente do conselho penitenciário do estado. 

Filiada ao PSOL e candidata a coprefeita do Rio na chapa de Marcelo Freixo em 2016, Luciana Boiteux faz coro à advogada: “É uma lógica inversa: em vez de conceder direitos, retira. A lei é clara, é um direito da criança, e não uma desculpa para soltar os pais. Quando se avança no legislativo, o poder judiciário embarreira”. 

Entre os principais motivos da prisão da ex-primeira dama do Rio estão os contratos do escritório Ancelmo Advogados com empresas que receberam durante a gestão Cabral benefícios fiscais do governo fluminense e a suspeita de que ela estaria dando prosseguimento às práticas de corrupção e lavagem de dinheiro uma vez que não teria entregado todas as joias compradas pelo casal aos investidores. 

*do programa de estágio do JB