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A Carta Apostólica Misericordia et misera

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No último domingo do ano litúrgico, dia 20 de novembro, Solenidade de Cristo Rei, o Papa Francisco fechou, na Basílica de São Pedro, no Vaticano, a Porta Santa, aberta há um ano por ocasião do Jubileu Extraordinário da Misericórdia.

O Jubileu foi celebrado também em todas as Dioceses do mundo, que fizeram o encerramento desse tempo santo um domingo antes, e, segundo a Radio Vaticano, informativo de 21/11/16, cerca de 950 milhões de pessoas (80% dos católicos) passaram pela Porta da Misericórdia nas igrejas, fora aquelas que puderam usufruir das indulgências por outros meios: em seu leito de sofrimento, nos presídios etc.

Pois bem, ao final da missa de encerramento do Ano Santo, a título de conclusão desse tempo oportuno (kairós) da graça de Deus, o Santo Padre assinou um documento nos presenteando com a Carta Apostólica iniciada com as palavras Misericordia et misera – que significam A Misericórdia e a mísera.

A expressão é tirada do comentário de Santo Agostinho ao Evangelho de João 8,1-11, que recebe o nome de “O encontro de Jesus com a pecadora” ou de “O Evangelho da mulher adúltera”, mas, na realidade, é o grande encontro da Misericórdia, que é o próprio Cristo, com aquela que, na sua miséria, necessita do perdão de Deus a fim de não ser apedrejada e, assim, poder recomeçar a sua vida. Portanto, a Misericórdia é o próprio Jesus perdoador, e mísera denomina aquela que está na miséria, desgraçada, infeliz, desditosa etc. (cf. Dicionário Completo da Língua Portuguesa. S. Paulo: Publifolha, 2000).

Tem ela, além da brevíssima Introdução, 22 parágrafos, sendo o último, usado a título de conclusão, voltado à Virgem Maria, a Mãe de Misericórdia, que nos cobre com seu manto e abre os nossos olhos para olharmos melhor para a Divina Misericórdia, que é o seu próprio Filho Jesus Cristo (n. 22).

Esse olhar que o Papa nos convida a ter com a ajuda de Maria Santíssima foi o que se deu com a mulher acusada de adultério: Jesus não a culpa na frieza da Lei de Moisés, mas, a olha a partir do olhar para dentro do coração da mulher, que o Senhor perscrutou. A partir daí, Ele, vendo sua sinceridade interior, a perdoa e dá-lhe a esperança de futuro. Apesar das fraquezas humanas a que todos estamos sujeitos, deve ela ir em paz e não pecar mais (cf. Jo 8,10-11).

Na casa de um fariseu que convidou Jesus para a refeição, aparece outra mísera que depois de uma vida no pecado se volta para o Senhor da Misericórdia e se põe a “lavar” os Seus pés com as lágrimas e a enxugá-los com seus longos cabelos e passar-lhe perfume. Foi perdoada, porque muito amou (cf. Lc 7,36-50). Aliás, todo o Evangelho é perpassado pela presença misericordiosa de Deus, que, desde o Antigo Testamento, apesar da dureza de coração do povo escolhido, se faz misericordioso (cf. Êx 34,6; Sal 136/135) a ponto de mostrar o Senhor Jesus a perdoar os seus próprios algozes e assassinos (cf. Lc 23,34).

É com este pano de fundo bíblico que o Papa Francisco nos convida a não perdermos a alegria e a esperança de sermos alcançados pela misericórdia de Deus em uma cultura de alta tecnologia, mas ao mesmo tempo – paradoxalmente, podemos dizer –, de solidão, tristeza e desespero, inclusive entre os jovens. São palavras do Papa: “Há necessidade de testemunhas de esperança e de alegria verdadeira para expulsar as quimeras que prometem uma felicidade fácil com paraísos artificiais. O vazio profundo de tanta gente pode ser preenchido pela esperança que trazemos no coração e pela alegria que brota dela. Há tanta necessidade de reconhecer a alegria que se revela no coração tocado pela misericórdia! Por isso, guardemos como um tesouro estas palavras do Apóstolo, ainda no clima do III Domingo do Advento, recentemente celebrado: ‘Alegrai-vos sempre no Senhor’! (Fl 4,4; cf. 1 Ts 5,16)” (n. 3).

O Papa relembra o período intenso do Jubileu como tempo de perdão e de encontro com Deus e com os irmãos e irmãs, mas não para aí: convida-nos a continuarmos a vida de semeadores da misericórdia ao mundo. Isso se faz por meio da celebração da Misericórdia, pois, de fato, é muito belo ouvir o sacerdote dizer, entre tantas outras referências da Missa, as palavras: “Deus todo poderosos, perdoe os nossos pecados e nos conduza à vida eterna”. Sim, por ter todo o poder, o Senhor se faz misericórdia para cada um de nós. Contudo, a misericórdia de Deus se manifesta também em outros sacramentos ditos “de cura”, ou seja, a Confissão e a Unção dos Enfermos, pois nos tiram da morte espiritual e nos devolvem a vida em Cristo Jesus.

A Palavra de Deus ouvida atentamente na Missa ou fora dela, especialmente na meditação pessoal pela Lectio Divina – a leitura orante da Palavra de Deus –, é de suma importância para entendermos melhor o carinho misericordioso do Pai da misericórdia para com cada um de nós. Esse conhecimento não é teórico, mas deve levar-nos à prática das obras de misericórdia, especialmente para com os mais necessitados.

Pede também, com longa insistência, que a Confissão sacramental volte a ter, na Igreja, seu lugar de destaque como a via ordinária ou normal da reconciliação com Deus, e que os sacerdotes sejam testemunhas dessa mesma misericórdia. Neste tempo de Advento e no Ano Mariano em nosso país esse gesto deve ser ainda mais valorizado. Alguém que foi perdoado e porque o foi, pode também perdoar.

São palavras do Papa: “Nós, confessores, temos experiência de muitas conversões que ocorrem diante dos nossos olhos. Sintamos, portanto, a responsabilidade de gestos e palavras que possam chegar ao fundo do coração do penitente, para que descubra a proximidade e a ternura do Pai que perdoa. Não invalidemos estes momentos com comportamentos que possam contradizer a experiência da misericórdia que se procura; mas, antes, ajudemos a iluminar o espaço da consciência pessoal com o amor infinito de Deus (cf. 1 Jo 3,20)” (n. 11).

Nesse contexto, continua válida a faculdade de todos os sacerdotes absolverem a excomunhão decorrente do pecado do aborto. Isso não diminui a gravidade do aborto conscientemente provocado, como se possa pensar, mas abre as portas da reconciliação às mulheres arrependidas de tê-lo cometido, e a todos que intervieram no ato. Isso se lê no nº 12 da Carta: “Quero reiterar com todas as minhas forças que o aborto é um grave pecado, porque põe fim a uma vida inocente; mas, com igual força, posso e devo afirmar que não existe algum pecado que a misericórdia de Deus não possa alcançar e destruir, quando encontra um coração arrependido, que pede para se reconciliar com o Pai”.

Há ainda um especial convite do Papa Francisco para que se olhe com imenso carinho as famílias, começando pelas mais necessitadas, o que “requer, sobretudo por parte do sacerdote, um discernimento espiritual atento, profundo e clarividente, para que toda a pessoa, sem exceção, em qualquer situação que viva, possa sentir-se concretamente acolhida por Deus, participar ativamente na vida da comunidade e estar inserida naquele Povo de Deus que incansavelmente caminha para a plenitude do reino de Deus, reino de justiça, de amor, de perdão e de misericórdia” (nº 13). Acolham-se como aqueles que sofrem os diversos males da vida, sem se esquecer das famílias em situação de luto com a perda de um ente querido. “A partilha deste momento pelo sacerdote é um acompanhamento importante, porque lhe permite viver a proximidade à comunidade cristã no momento de fraqueza, solidão, incerteza e pranto” (nº 15).

O Jubileu se encerrou, a porta material da misericórdia foi fechada, mas o Coração de Jesus – a porta da misericórdia por excelência – continua aberto. Daí o dever de cada um de nós realizarmos, com nossos gestos concretos, as obras da misericórdia divina em nossa vida e na dos irmãos e irmãs. “É a hora de dar espaço à imaginação a propósito da misericórdia para dar vida a muitas obras novas, fruto da graça. A Igreja precisa narrar hoje aqueles ‘muitos outros sinais’ que Jesus realizou e que ‘não estão escritos’ (Jo 20,30), de modo que sejam expressão eloquente da fecundidade do amor de Cristo e da comunidade que vive d’Ele. Já se passaram mais de dois mil anos, e, todavia, as obras de misericórdia continuam a tornar visível a bondade de Deus” (nº 18). É impulso que o Santo Padre quer dar nessa direção neste nosso tempo.

Somos, de um modo muito especial, chamados a batalhar contra a “cultura da indiferença”, assunto, aliás, muito caro ao Papa Francisco, e dentro deste propósito pensar em alguns dos grandes desafios da humanidade, como exposto no nº 19: “Não ter trabalho nem receber um salário justo, não poder ter uma casa ou uma terra onde habitar, ser discriminados pela fé, a raça, a posição social... estas e muitas outras são condições que atentam contra a dignidade da pessoa; frente a elas, a ação misericordiosa dos cristãos responde, antes de mais nada, com a vigilância e a solidariedade. Hoje são tantas as situações em que podemos restituir dignidade às pessoas, consentindo-lhes uma vida humana. Basta pensar em tantos meninos e meninas que sofrem violências de vários tipos, que lhes roubam a alegria da vida. Os seus rostos tristes e desorientados permanecem impressos na minha mente; pedem a nossa ajuda para serem libertados da escravidão do mundo contemporâneo. Estas crianças são os jovens de amanhã; como estamos a prepará-las para viverem com dignidade e responsabilidade? Com que esperança podem elas enfrentar o seu presente e o seu futuro”?

Alguém poderia perguntar: mas, afinal, como fazer tudo isso? Os desafios são tantos, que posso eu realizar neste mar de coisas? Como agir? Quando agir? Etc. Em resposta, devemos pedir as luzes do Espírito Santo e colocar-nos em uma postura aberta – agora é a vez de abrirmos as portas do nosso coração – a fim de respondermos aos questionamentos acima. O Mestre Interior falará ao coração de cada um e de suas comunidades, a fim de que tudo seja concretizado, tendo em vista especialmente o Cristo na pessoa do irmão e da irmã mais necessitados. É o exemplo que nos dá a mãe Maria, que nos acompanha em suas festas durante o tempo do Advento: dizer sim ao Plano de Deus, ou seja, configurar nossa vontade à vontade do Senhor.

O Papa ainda diz: “como mais um sinal concreto deste Ano Santo Extraordinário, se deve celebrar em toda a Igreja, na ocorrência do XXXIII Domingo do Tempo Comum, o Dia Mundial dos Pobres. Será a mais digna preparação para bem viver a solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo, que Se identificou com os mais pequenos e os pobres e nos há de julgar sobre as obras de misericórdia (cf. Mt 25,31-46). Será um Dia que vai ajudar as comunidades e cada batizado a refletir como a pobreza está no âmago do Evangelho, e tomar consciência de que não poderá haver justiça nem paz social enquanto Lázaro jazer à porta da nossa casa (cf. Lc 16,19-21). Além disso, este Dia constituirá uma forma genuína de nova evangelização (cf. Mt 11,5), procurando renovar o rosto da Igreja na sua perene ação de conversão pastoral para ser testemunha da misericórdia” (n. 21).

É importante que leiamos o documento por inteiro, que é muito rico e tem muito mais assuntos. Porém, ao concluir esta breve reflexão, faço minhas as próprias palavras do Papa Francisco, em forma de bênção e de oração: “Que o Espírito Santo nos ajude a estar sempre prontos a prestar de forma efetiva e desinteressada a nossa contribuição, para que a justiça e uma vida digna não permaneçam meras palavras de circunstância, mas sejam o compromisso concreto de quem pretende testemunhar a presença do Reino de Deus” (nº 19).

Orani João, Cardeal Tempesta, O.Cist.

Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ