Se você tem saudades da ditadura militar e admira o ex-ministro Delfim Netto, é melhor não ler este artigo. Pensando melhor, leia. Quem sabe, melhor informado, mude de opinião. Delfim Netto é um dos personagens mais deletérios da história recente de nosso país. Mas, ardiloso que é, consegue jogar para o esquecimento dados condenáveis de sua biografia. Movido pela ambição desmedida, Delfim teve participação ativa em momentos sinistros do regime autoritário. Na economia, à frente do ministério da Fazenda nos governos Costa e Silva e Garrastazu Médici, vendeu gato por lebre e manipulou estatísticas. Na política e nas relações com a imprensa, mostrou-se intolerante e vingativo. E, nos costumes, foi marcado por uma denúncia de corrupção, da qual nunca se desvencilhou.
Vamos aos fatos. O ambicioso professor da USP, já no cargo de ministro da Fazenda (1967 a 1974), estava presente na famosa reunião de 13 de dezembro de 1968 que decretou o lamentável AI-5, cassando direitos políticos e levando para os porões e para o exílio milhares de brasileiros. Na reunião, Delfim não só votou a favor da supressão da liberdade, como argumentou que a repressão era necessária para a realização de ajustes na economia. Entre os ajustes, é lógico, estavam o fechamento de sindicatos e a adoção de forte arrocho salarial. Recentemente, em entrevista ao jornal “Valor Econômico”, Delfim afirmou que não se arrepende de ter firmado o AI-5 e disse que assinaria de novo o malfadado decreto. Faz isso com sorriso melífluo e há gente que o considera espirituoso e irônico.
De espirituoso Delfim não tem nada. Ele é, na verdade, um grande cínico. Em várias entrevistas, o ex-ministro só falta jurar por Deus que, embora fosse o todo poderoso czar da economia nos anos de chumbo, nunca soube da prática de tortura nos quartéis e nas casas da morte operadas pelo DOI-Codi e pela Operação Bandeirantes. E dá uma versão ridícula. “Certa vez, perguntei ao general Médici se havia tortura no país e ele me disse que não. Acreditei em sua palavra”. Não sei bem por que alguns órgãos de imprensa publicam essa explicação de Delfim, sem exigir mais detalhes.
Delfim sabia, sim, dos horrores comandados por delegados do Dops e oficiais da Três Armas. Além disso, pressionou empresários a contribuírem para o caixa da Oban. Ele e o presidente da Fiesp, Theobaldo de Nigris. Quem contribuía tinha facilidades de crédito do governo. Quem se recusava era ameaçado pelo ministro de sofrer uma devassa fiscal em seus negócios. Um dos poucos a resistir foi Antônio Ermírio de Moraes, do grupo Votorantim.
Impossível Delfim ter acreditado em Médici. O ministro da Fazenda era amigo íntimo do empresário Henning Boilensen, presidente da Ultragaz. Boilensen, como se sabe hoje, gostava de assistir a sessões de tortura para as quais era convidado pelo delegado Sérgio Fleury. Foi o empresário que deu a Fleury a ideia de tocar música clássica durante o suplício dos presos políticos com choques elétricos. E ainda batizou com seu nome a tenebrosa invenção: “Pianola Boilensen”. Pois bem. Conta o escritor Per Johns, na época assessor na Ultragaz, que certa vez Delfim Netto desembarcou em Copenhague acompanhado do amigo Henning Boilensen e foi recebido por um grupo de estudantes com cartazes contra a ditadura militar. Os jovens dinamarqueses jogaram baldes de tinta vermelha nos dois, para lembrar exatamente a cumplicidade de Boilensen com a tortura. Sobraram respingos para Delfim. Mas o ex-ministro não se lembra de nada. Nunca soube de tortura. Confiou em Médici. Já seu amigo Boilensen foi justiçado pelos crimes que cometeu. Foi metralhado por militantes da ALN numa feira no Parque Trianon, em São Paulo, em abril de 1971.
Delfim também era truculento. Perseguiu jornalistas e economistas que criticavam a condução da política econômica. Aloísio Biondi, decano do jornalismo econômico, sofreu perseguição pessoal. Se alguém o empregava, Delfim imediatamente pedia sua cabeça. No escritório da Fazenda, no Rio, ele se recusava a iniciar entrevistas enquanto sua assessoria não retirasse da sala jornalistas dos quais ele não gostava. Os expulsos pegavam as anotações depois com os colegas. Era comum também seus assessores ligarem para as redações pedindo para mudar textos dos repórteres. A pressão, nesses casos, era escancarada. Com a censura imposta pelo AI-5, Delfim fazia o que bem entendia, inclusive manipular índices de inflação. Em relação aos economistas, sua atitude era a mesma. Um grupo deles conseguiu se refugiar no IPEA, na órbita do ministro do Planejamento, Reis Velloso. Lá estavam, por exemplo, Pedro Malan, Dionísio Carneiro e Edmar Bacha. O professor Mário Henrique Simonsen dizia que eles criaram no IPEA uma espécie de EPGE do B, que seria uma dissidência da escola de pós graduação da Getúlio Vargas. Desafeta emérita, Maria da Conceição Tavares pôs no então ministro um apelido que resistiu a todos os regimes: “O Gordo”.
Chego ao fim. Não é de agora que Delfim leva a pecha de corrupto. Em 1976, no governo Geisel, quando era embaixador em Paris foi alvo de um minucioso relatório da lavra do coronel Raimundo Saraiva, adido militar na França. Segundo o “Relatório Saraiva”, Delfim e dois amigos (Vilar de Queiroz e Andrade Pinto) teriam recebido de 6 a 10 milhões de dólares para facilitar negócios de bancos franceses no Brasil. Em depoimento, Vilar de Queiroz informou que as gordas comissões começaram a ser pagas antes de Delfim assumir a embaixada (talvez quando ele ainda era ministro). Consta do relatório que Delfim Netto, no mundo diplomático em Paris, era conhecido como “Monsieur Dix pour Cent”, ou seja, Senhor 10%. Pode ser mera coincidência, mas na denúncia do Ministério Público Federal sobre desvios na obra da Usina Hidrelétrica de Belo Monte explica-se que o ex-ministro da Fazenda teria embolsado do consórcio vencedor cerca de R$ 15 milhões, ou seja, 10% do total da propina. Foi o que Delfim recebeu por uma “consultoria fictícia”. Estão arrolados ele e o sobrinho. O tempo passou, mas pelo que se vê Delfim continua à altura do título que ganhou em Paris. O ex-ministro tem 89 anos, mas, pela denúncia da Operação Buona Fortuna, a comissão do “Monsieur Dix pour Cent” não mudou. Com este artigo, me despeço de Antonio Delfim Netto, economista ao qual jamais pedi uma entrevista. Seu passado condena.