BRASIL

'Campo de concentração': pastores evangélicos gerenciavam clínicas clandestinas a base de tortura, em Goiás

Todas as vítimas foram levadas para o local de forma ilegal e involuntária. No momento do resgate, muitos apresentavam lesões graves, desnutrição e confusão mental

Por Gabriel Mansur
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Publicado em 01/09/2023 às 13:26

Alterado em 01/09/2023 às 22:08

Paciente é amarrado na cama para não fugir Foto: Reprodução

Duas clínicas clandestinas, que mais pareciam campos de concentração, como aqueles que havia na Alemanha nazista, foram descobertas e fechadas pela Polícia Civil de Goiás no município de Anápolis, a cerca de 60 quilômetros de Goiânia, entre segunda (28) e quinta-feira (31).

Nos estabelecimentos, a corporação, chefiada pelo delegado Manoel Vanderic Filho, titular da Delegacia Especializada no Atendimento ao Idoso (Deai), resgatou quase 100 pessoas, de 14 a 96 anos de idade, incluindo deficientes intelectuais, dependendentes químicos e alcoólatras, que viviam em cárcere privado, sofriam torturas, maus-tratos e eram até mesmo amarrados como uma espécie "tratamento de choque".

Os pacientes eram levados de forma ilegal e involuntária ao local, onde eram trancados mediante pagamento de, no mínimo, um salário mensal. 

Pastores Klaus Júnior e Suellen Klaus
Foto: Reprodução

Vanderic ressaltou que esse tipo de ocorrência é inédita em Anápolis. Os familiares pagavam valores acima de um salário mínimo para que as vítimas ficassem a contragosto nos locais, que não apresentavam as mínimas condições sanitárias e de higiene, com cheiro de mijo e até fezes no chão. Além disso, nenhum dos estabelecimentos contava com médicos, psicólogos, psiquiatras ou tratamento adequado.

As investigações dão conta que as duas unidades pertenciam ao mesmo casal de pastores evangélicos: os suspeitos são Suelen Amaral Klaus, que já foi presa, e Angelo Mário Klaus Júnior, que é considerado foragido da Justiça. Os religiosos também eram proprietários e pastoreavam na Igreja Batista Nova Vida de Anápolis, na Vila Industrial.

O jornal local "O Popular" conversou com duas mulheres que costumavam frequentar o templo religioso. Uma delas, que preferiu não se identificar, demonstrou espanto após tomar conhecimento do caso: "O choque que a gente leva é coisa de outro mundo. Ficamos sem entender e acreditar até que ponto chega o ser humano", disse.

A outra fiel, que também não se identificou por medo de represália, afirmou que deixou de frequentar a igreja por conta de problemas de convivência com os pastores, especialmente Suelen: "Me abalou bastante a notícia. Como pode, né?", questionou.

Descoberta da clínica 1

A primeira clínica foi descoberta na segunda-feira (28), depois que um idoso de 96 anos deu entrada no Hospital Estadual de Anápolis (Heana) com sinais de maus-tratos, com feridas ainda abertas e sem nenhum tipo de medicamento para tratá-las. "Fomos investigar com a família e descobrimos que ele estaria internado nesta clínica", resumiu o delegado.

Chamada de Amparo Centro Terapêutico, a unidade funcionava na zona rural de Anápolis, no Sítio Promissão Chácara Zoe. No local, foram encontrados 50 homens em condições precárias. Não tinham acesso à alimentação adequada, eram dopados e agredidos constantemente. Segundo relato dos internos, os idosos e um adolescente autista rotineiramente eram alvos de baldes com água gelada e amarrados na cama.

As vítimas foram resgatadas com o apoio de equipes da Prefeitura, Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) e assistência social. Algumas vítimas foram internadas, e outras estão alojadas no Ginásio Carlos de Pina.

Quatro funcionários não identificados e Suelen foram presos em flagrante nesta primeira operação. Já o pastor conseguiu se embrenhar na mata, em ponto de difícil acesso, e ainda não foi localizado pelos investigadores. Ele disse que se entregaria na quarta, o que não aconteceu. Até a última atualização desta reportagem, ele seguia foragido.

De acordo com a Polícia Civil, todos os presos vão responder por tortura qualificada e cárcere privado qualificado.

Segunda clínica

A segunda chácara foi localizada pela polícia na quinta (31) com 43 internos trancados com cadeados, sendo a maioria portadora de deficiência intelectual. A descoberta ocorreu por meio da divulgação que interrompeu o funcionamento da primeira clínica. A unidade, que também leva o nome de Amparo, fica na região rural da cidade, nas proximidades do Presídio Estadual, na BR-414

"Várias pessoas começaram a procurar a delegacia informando que fizeram pagamentos para esse casal e internaram parentes com eles, mas esses parentes não estavam na primeira clínica. A partir daí, passamos a desconfiar da existência de um segundo lugar", disse Vanderic.

Neste segundo local, foi encontrado um contrato de aluguel em nome do pastor. "O proprietário (da chácara) disse que a alegação do pastor é de que usaria o local para eventos religiosos", pontuou Valderic.

Ao perceberem a polícia, os dois funcionários fugiram do local. Eles já foram identificados e tiveram a prisão preventiva solicitada, mas também estão foragidos.

Comunicação debilitada

A maioria dos homens internados era dificiente intelectual grave, tanto que, segundo Vanderic, apenas cinco tinham condições de conversar.

"Contaram que ficavam trancados o dia todo. Saíam por volta de 10 horas para comer flocos de milho e, às 16h, para comer arroz com salsicha. Quem desobedecia, apanhava", relatou o delegado.

Apesar de os homens nunca terem sido visitados por médicos, eles viviam sob efeitos de medicamentos. Vanderic destaca ainda que, no momento, a maior dificuldade encontrada é o fato de que a maioria dos internos é de outros estados. Todos, incluindo os que estavam na primeira clínica, estão sem documentação pessoal.

Nesta quinta, a Prefeitura de Anápolis acolheu os 43 homens, de idade entre 16 e 84 anos, no mesmo ginásio em que o grupo anterior ficou.

"Estamos fazendo a escuta de cada um para fazer o encaminhamento para as instituições adequadas", diz Eerizania Freitas, secretária municipal de Integração.

O outro lado

À polícia, Suelen negou a existência de qualquer tipo de maus-tratos nos estabelecimentos. "Ela falou que estava prestando um serviço e que eles eram bem cuidados", pontuou o delegado.

Além de pastora evangélica, Suelen ocupava o cargo de gerente de banco de servidores comissionados da Secretaria Municipal de Economia e Planejamento de Anápolis, com salário de mais de R$ 5 mil. Sua exoneração foi publicada no Diário Oficial do Município (DOM) da última quarta, após a deflagração da operação.

Em 2020, ela chegou a ser candidata a vereadora do município pelo Partido Solidariedade.

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