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Guerra do tráfico no Juramento é simbólica

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Julio Ludemir, Jornal do Brasil

RIO - Algumas batalhas na interminável guerra dos morros têm um caráter muito mais simbólico do que financeiro ou mesmo estratégico. Esse é o caso das escaramuças em torno do morro do Juramento. Dominá-lo não fará grande diferença para o Comando Vermelho ou a ADA, as facções criminosas que há alguns meses infernizam as noites nos bairros de Vicente de Carvalho e Thomaz Coelho, com a intensa movimentação de homens e armamento de grosso calibre.

Dominar o morro do Juramento é uma questão de honra para as facções criminosas por causa da história da favela, que ocupa as manchetes dos jornais há quase tanto tempo quanto o crime organizado no Rio de Janeiro. Foi de lá que o mítico José Carlos dos Reis Encina, mais conhecido como Escadinha, moldou a lenda de bandido social. Era uma época em que os assaltantes de banco, recém-saídos de um longo período de convivência com os presos políticos na Ilha Grande, distribuíam comida, gás e remédio para conquistar o coração e a mente dos filhos da comunidade.

O feito mais conhecido de Escadinha foi a cinematográfica fuga da mesma Ilha Grande, em um a operação comandada por seu parceiro José Carlos Gregório, o Gordo. Essa fuga, que pela primeira vez na história do crime carioca fazia uso de um helicóptero, foi edulcorada até mesmo pelos policiais que faziam guarda na tarde de 31 de dezembro de 1984. O helicóptero jamais pousou no pátio da Penitenciária Cândido Mendes, surpreendendo a todos com rajadas de metralhadora. Na verdade, Escadinha entrou no helicóptero da praia da Parnaioca, a alguns quilômetros do presídio. Os agentes penitenciários só souberam de sua fuga no confere da noite.

Três anos depois, o mesmo Gordo tentaria repetir a façanha, dessa vez tentando invadir o complexo penitenciário da Frei Caneca pelo ar. O objetivo do voo rasante sobre a penitenciária Milton Dias Moreira era resgatar um outro personagem mitológico da segunda geração do Comando Vermelho: Paulo Roberto de Moura, o Meio-Quilo. Mas o então dono da favela do Jacarezinho foi alvejado pelos policiais de plantão e caiu de uma altura de cerca de 30 metros. Morreu no dia seguinte, sem poder dormir com a bela Maria Paula Amaral, filha do então vice-governador Francisco Amaral com quem estava tendo um tórrido caso de amor. Esse amor bandido chegou a ser tema de uma das novelas do escritor e roteirista José Louzeiro.

Não foi apenas por causa das fugas espetaculares que a história de Meio-Quilo e Escadinha se cruza e se confunde com a geração que ajudou a criar a mística do Comando Vermelho. Os dois eram bandidos altamente populares, quase idolatrados pelas comunidades nas quais nasceram e foram criados. O próprio enterro de Meio-Quilo foi prestigiado por uma multidão incalculável, que, depois de gritar que Meio-Quilo era seu rei, afrontou o estado ao construir uma estátua do chefe do tráfico na principal praça do Jacarezinho. Escadinha só não teve as mesmas homenagens fúnebres porque morreu 20 anos depois dos anos áureos do crime no Rio de Janeiro, após um longo período na cadeia.

Essa dupla dinâmica entrou para a história do crime organizado pelo fato de ter descoberto as rotas que aproximaram as favelas cariocas da cordilheira dos Andes. Fizeram amizade com um dos intermediários da narcorrepública boliviana e uma vez a cada 15 dias o conduziam por todas as favelas da cidade, deixando quantidades industriais da droga em consignação. Esse momento coincide com duas grandes mudanças no crime carioca. O tráfico, até então restrito à maconha, se torna uma poderosa indústria. E atrai a geração de assaltantes de banco que havia fugido do hoje desativado presídio da Ilha Grande no início da década de 1980.

Depois da morte de Meio-Quilo, Escadinha, ainda como dono do morro do Juramento, se associaria a Ernaldo Pinto de Medeiros, o Uê. Com o então dono do morro do Adeus e Celsinho da Vila Vintém, Escadinha criaria a facção Amigo dos Amigos, exatamente a que hoje briga pelo comando do Juramento com o Comando Vermelho. Essa tríade redesenharia a guerra de facções no Rio de Janeiro depois da morte de Orlando Jogador, dono do complexo do Alemão até ser morto por Uê em uma noite que até hoje repercute nessas guerras. Os moradores de Vicente de Carvalho sabem bem disso.

* Julio Ludemir é escritor.