Ives Gandra Martins, JB Online
RIO - Quando dos trabalhos constituintes de 87/88, propugnei, no meu livro Roteiro para uma Constituição (Ed. Forense, 1987), que os Tribunais de Contas deveriam fazer parte do Poder Judiciário, como um verdadeiro poder responsabilizador da administração pública.
Justificava a proposta diversa da classificação como órgão auxiliar do Legislativo, que hoje ostentam essas Cortes, dedicadas a examinar os orçamentos previamente, durante sua execução ou após sustentando que poderia o Brasil inovar, criando um Poder Judiciário com uma tríplice vertente, ou seja: um Tribunal Constitucional para preservação da ordem e da lei maior, podendo inclusive ter Cortes de derivação; um Tribunal de Administração da Justiça, com duplo ou tríplice graus de jurisdição e Tribunais de Contas para a União e Estados admitia também cortes municipais , transformado em poder fiscalizador e responsabilizador da administração pública, com a mesma autonomia e independência de que sempre usufruiu o Poder Judiciário.
A proposta encontrou séria oposição entre constituintes para os quais preparara o roteiro, mas o resultado foi ter outorgado a Constituição de 1988 poderes maiores aos Tribunais de Contas do que tinham até a promulgação daquela lei suprema.
E seu papel relevante percebe-se na atuação altaneira de controlar as contas públicas, denunciando todas as operações em que se vislumbra lesão ao erário, ou por superfaturamento, ou por privilégios auto-outorgados, ou por facilidades inadmissíveis nos regimes democráticos, em que o dinheiro público é do povo.
Levanta-se, agora e todavia, por força de interesses contrariados em diversas administrações públicas, movimento para a extinção de tais Cortes, porque muitos dos que tiveram projetos, licitações, contratações ou gerenciamento das obras públicas impugnadas sentem-se cerceados na liberdade, não poucas vezes irresponsável, de gastar, inescrupulosamente, os recursos da Fazenda.
Haveria, se tal movimento prosperasse, um fantástico retrocesso constitucional, pois as críticas dos administradores públicos até hoje contra o modelo de fiscalização consagrado na lei maior, sobre serem infundadas, improcedentes e inconsistentes, decorrem apenas de interesses contrariados.
É necessário que o povo tenha conhecimento de que tais tribunais desempenham o relevante papel de não permitir a malbaratação do dinheiro público, dos nossos tributos, dos esforços da sociedade em criar riquezas, retirando o governo parcela deste trabalho da comunidade para gastar, algumas vezes bem, muitas vezes mal, aquilo que o cidadão duramente conseguiu ganhar.
Os Tribunais de Contas são, portanto, os grandes protetores das comunidades contra os trens da alegria , os desperdícios, os privilégios autoconcedidos, que, sem sua fiscalização, teriam um crescimento expressivo.
Em livro que será veiculado pela Revista dos Tribunais, até o fim do mês de setembro (Uma breve teoria do poder), lembro Montesquieu que, ao formular a teoria moderna da tripartição dos poderes, fê-lo, como dizia, porque é necessário que o poder controle o poder, pois o homem não é confiável no poder.
Este controle, no Brasil, na União Europeia, na grande maioria dos países democráticos, é feito pelos Tribunais de Contas, instituições que devem ser preservadas, como garantia da democracia e do bom funcionamento das demais instituições.
Deve-se fulminar, portanto, no nascedouro, o movimento que tem sido, algumas vezes, noticiado pela mídia. A democracia brasileira depende da atuação dos Tribunais de Contas.
* Ives Gandra Martins é professor emérito da Universidade Mackenzie e das escolas de Estado-Maior do Exército (Eceme) e Superior de Guerra (ESG).