“Não estamos interpretando a Constituição, estamos reescrevendo”, disse a certa altura de seu voto o ministro Gilmar Mendes, na sessão em que o STF aprovou conclusivamente a restrição do foro especial para parlamentares. Agora eles só serão julgados pelo STF por crimes cometidos durante o mandato e a ele relacionados. A contrário do que foi proposto por Dias Toffoli, e apoiado por Gilmar, as cortes especiais foram mantidas para ocupantes de outros cargos a que se chega, não pelo voto, mas por concurso ou nomeação. Os aplausos de agora ao suposto golpe na impunidade podem virar críticas quando as consequências aparecerem.
Foi uma vitória da criminalização da política, que tem seus criminosos mas nunca deixará de ser um dos eixos da vida em democracia. A qualidade da representação é que precisa melhorar. Diziam ontem as manchetes, em tempo real, que a decisão foi tomada por unanimidade e vai reduzir a impunidade. Unanimidade relativa, pois cinco ministros fizeram restrições importantes ao voto vencedor, embora seguindo o que já estava determinado pelos oito que votaram em novembro, antes de Toffoli pedir vistas do processo. Já vencidos, trataram de marcar posição e apontar as consequências, buscando, em vão, algum ajuste nos votos anteriores. Mas ninguém acolheu a proposição de Alexandre de Morais para que crimes de toda ordem fossem julgados pelo STF, nas novas condições, e não apenas os conexos com o mandato. Toffoli propôs o fim do foro especial para os ocupantes de outros cargos por ele beneficiados, como ministros de Estado, magistrados em geral, procuradores etc. Só foi seguido por Gilmar. Quanto à impunidade, ainda veremos com a coisa funcionará na primeira instância, em varas afogadas, muitas vezes permeáveis à influência política, e com os condenados podendo ganhar tempo com recursos. No STF, não dispõem de duplo grau de jurisdição, só podem recorrer a Deus.
Em seu voto caudaloso, Gilmar advertiu incisivamente sobre as consequências, citando Victor Nunes Leal: “Tal é o poder da lei que a sua elaboração reclama precauções severíssimas. Quem faz a lei é como se estivesse condicionando material explosivo”. Ontem os juízes legislaram. Gilmar revisitou a jurisprudência histórica do tribunal sobre o foro especial e lembrou sua presença, mais ou menos abrangente, em todas as constituições brasileiras. Justamente para garantir aos ocupantes de funções públicas julgamento imune a pressões políticas. Como Toffoli, desancou relatório da FGV que apontou a morosidade do STF como um serviço à impunidade. Foi cortês com o relator, seu desafeto público, buscando talvez uma conciliação sobre a resolução final. Como ela não veio, seguiu a maioria, aderindo à proposta de Toffoli. Perderam. ~
Muitas questões exigirão respostas do STF, algumas apontadas por Gilmar: quem vai julgar o governador que cometeu crime no cargo mas virou deputado? A primeira instância ou o STF, foro dos governadores? E o candidato que, antes de diplomado, cometeu crime para se eleger? O crime terá ou não relação com o mandato? Já dá para imaginar: sempre que for julgar um parlamentar, antes a corte vai se debruçar na preliminar: cabe o foro ou vai para a primeira instância? Outros problemas nem foram mencionados, como o da execução provisória da pena. Se um deputado é condenado na primeira instância, poderá ser preso após a confirmação da sentença em segundo grau? Mas não diz a Constituição que parlamentares só podem ser presos por flagrante de crime inafiançável e mediante autorização da respectiva Casa? Não se falou disso ontem.
Está na Câmara a PEC já votada pelo Senado que acaba com o foro para todos. Sua aprovação pode ser o troco do Congresso mas, enquanto durar a intervenção no Rio, a Constituição não pode ser emendada. A não ser pelo STF, como ontem.