O chamado marco legal do saneamento, alterado durante passagem pela Câmara, e, portanto, de volta à original apreciação do Senado, vem tramitando sob a suspeita de que, aprovado e posto em prática, tornará o pobre brasileiro refém da iniciativa privada, quando esta for chamada a disputar, em licitação, a implantação de serviços absolutamente essenciais. Certamente esse temor faria sentido e cobraria atenção especial a partir do momento em que a administração pública não se precavesse em defesa da população, e se armasse de instrumentos que contivessem a voracidade de eventuais ganâncias. Tal como já se procede na remuneração aos distribuidores de energia elétrica, pode muito bem o governo estabelecer o controle de qualquer tarifa. Talvez já a partir de agora, com a matéria ainda distante da sanção presidencial, o Congresso, tão temeroso, deva se antecipar, estabelecendo regras para frear futuros abusos contra a economia popular.
Teme-se o excesso, sobretudo entre congressistas das bancadas de oposição, na aplicação de tarifas relativas à distribuição de água, quando o serviço estiver confiado às empresas, ao serem chamadas a realizar algumas das importantes tarefas que não conseguem encontrar disponibilidades no erário. Pois é exatamente no âmbito das iniciativas em tela, que maior parece ser o leque de garantias contra exorbitâncias, considerando-se que os contratados serão responsabilizados apenas pelo tratamento e distribuição, tal como já se admite nas empresas públicas que operam no setor. Ora, nem mesmo a estas a água pertence; ela é bem comum, sem proprietários, nasce para todos e não está à venda. Tal observação, que parece tão líquida como cristalina, é suficiente para dar aos estados e municípios recursos capazes de obstar a sede de grupos que pretendam aproveitar-se desse novo manancial, que em breve estará aberto. Querendo, o poder público terá suficientes forças para impedir que o povo seja explorado na prestação de serviços dos quais não pode prescindir.
O Brasil contabiliza doloroso deficit nos programas de saneamento básico, figurando aí entre os países mais modestos do mundo civilizado. Vê-se que entre nós a pobreza dos escassos dutos sanitários disputa primazia com a raridade dos canos de água potável; tudo em conluio com as grandes paisagens de misérias. Quando se sabe que esgotos correm a céu aberto, até mesmo em regiões periféricas das capitais (nem mesmo Brasília consegue escapar como exceção), é de se imaginar o cenário constrangedor que se abre pelo interior.
A implantação de serviços dessa natureza raramente anima governadores e prefeitos, porque os usuários logo esquecem de obras enterradas. Alguns, sem pudor, não se vexam ao explicar que dutos escondidos não dão voto, e por isso devem ser relegados. Ainda que saibam, ou deviam saber, que o dinheiro ali aplicado é o que oferece melhor retorno. Já ficou suficientemente demonstrado: um único real investido em projetos de saneamento básico resulta em cinco, que vão ser economizados na assistência à saúde das populações mais carentes.
Se o poder público não tem como assumir os grandes investimentos que se fazem necessários, recorra-se à iniciativa privada, garantindo-lhe justa remuneração, definida pela via licitatória, sem que se descuide de policiar e fazer prevalecer o interesse publico. Não haver de ser, sob a inspiração de temores gerados pela possibilidade de desvios, que o país continuará convivendo com atrasos que envergonham e infelicitam a sociedade brasileira.