ENTRE REALIDADE E FICÇÃO
Perdemos Ricardo Gontijo, repórter que marcou uma geração
Publicado em 10/11/2022 às 14:08
Alterado em 10/11/2022 às 14:08
Cavaleiro das luzes, passageiro das redações, repórter apaixonado pelos sons e as emoções das ruas, cético e sempre sobrecarregado de dúvidas, texto primoroso de um escritor assombrado com suas próprias descobertas, morreu Ricardo Gontijo, mineiro, aquariano, 78 anos. Não é do meu conhecimento o que se escreveu no atestado de óbito, mas foram causas diversas que vieram se acumulando, em especial durante e após a covid-19: incertezas, malvadezas, solidão, certo despreparo para a vida, quedas e até um câncer.
Teve tempo e lucidez para comemorar a épica vitória de Lula, mas não para cantar um Casaca, Casaca, a turma é mesmo da fuzarca, com a subida do querido Vasco para a primeira divisão. Em seus quase 50 anos de redação, foi muito mais do que um repórter. Editor de revistas, criador de programas no rádio e tevê, mas foi sobretudo nas pretinhas, (teclas da antiga máquina de escrever), que se excitava até o orgasmo. Seguramente, um dos melhores repórteres de sua geração.
Tinha estilo no texto e uma enorme sensibilidade para observação. Chegava a um lugar, corria os olhos, e já sabia o que estava rolando ali. Dois prêmios Esso consagradores no início de carreira, década de 1970, ambos no Jornal da Tarde. O primeiro com Fernando de Morais, a série Aventura na Transamazônica (deu livro), e o segundo com uma magistral reportagem, Receita para São Paulo, propondo mudanças urbanas, que teve grande impacto na cidade, em parceria com o colega de Redação José Maria Mayrink.
Transitou no eixo São Paulo-Rio e aqui o conheci num apartamento na Selva de Pedra, Leblon, do amigo Paulo César de Araújo, o PC, outro que se foi. Naquele sábado, frei Betto, amigo de Ricardo desde a juventude católica mineira, foi para a cozinha fazer um bobó de camarão. Também presentes o repórter Marcelo Auler e o saudoso Marcos de Castro, o melhor copy que já passou por uma redação de jornal, então no JB.
Amigos ficamos e por aí fomos vida a fora. Não gostava de ônibus, só andava de táxi, fumava com parcimônia, adorava Mozart, Debussy e as Bachianas, de Villa Lobos. Relia com freqüência Lolita, de Nabokov, e O velho e o Mar, de Hemingway. De olhar terno e sorriso malicioso, fidalgo gentil, de fina ironia, dizia que só discutia com quem concordava. Detestava discussões que misturavam política e ideologia. Davam lhe tédio. Uma noite, no La Botella, em Ipanema, nosso ponto preferido de vinho, levantou-se da mesa e se retirou por que dois contendores, levados pelo ardor do tinto, ameaçaram se pegar pelo colarinho.
Em meio às andanças e trocas de redações, tivemos outros pontos de encontro em bares antigos da Cidade. Um deles foi o antigo Empório Lidador, na rua da Assemleia, que tinha nos fundos um bar estiloso, com aparência de um camarote de navio. Lá fazíamos o ‘Quintareco’ toda quinta-feira, final de tarde. Ricardo, Tareco, eu, uma garrafa de Red Label na mesa e um convidado ou convidada de excelência, para uma conversa com tema livre, com ênfase nos mistérios e encantos da mulher. Ao final, deveria gerar um livro, que felizmente não foi concluído.
Um dia, cansados da rotina, decidimos que chegara o momento de nos afastarmos das redações. Por não aspirarmos às funções de chefia, cargos de confiança dos patrões, e por não vermos na continuidade do trabalho nelas mais nada a aprender. Fundei uma pequena empresa de editoria, a Tiro de Letras, e Ricardo passou a trabalhar em assessorias de empresas do mercado financeiro.
Antes, eu havia assumido a chefia de redação da sucursal da Folha de S. Paulo, com o José Silveira no comando, e o chamei para repórter especial. Trabalhamos juntos num belo projeto jornalístico por uns cinco anos, até que tudo se desfez por uma grande aventura na Ultima Hora. Que não deu certo. Na rua de novo. Passados alguns meses, eu estava na TV Globo e ele assumindo a direção da Tribuna da Imprensa, jornal do Hélio Fernandes, para uma grande reformulação editorial.
Me ligou e marcamos um jantar no Garden, Jardim de Alá, outro de nossos pontos preferidos para conversar. Feito o convite, eu deixei a Globo para assumir a editoria de economia da Tribuna. Em meio a essas correntezas, um dia dom Ricardo bateu na porta de meu apartamento, em Copacabana, buscando refúgio. Chegara escondido no porta-malas do carro de um amigo, correndo de um oficial de justiça munido de uma ordem de prisão por não pagamento de pensão alimentícia.
Ficou lá homiziado por uma semana. Para maior segurança, chamou a mulher Luciana e fomos para o sítio da Suely, em Teresópolis, até que os advogados resolvessem a situação. A certa altura, me comunicou que estava morando no Hotel Paysandu, um 3 estrelas no Flamengo, que servia de concentração para a seleção brasileira de futebol. Levou a inseparável Olivetti portátil, fotos dos filhos, alguns livros e quadros. Fiquei sabendo depois que quando criança morara no Hotel Gontijo, da família, em Belo horizonte. Ricardo não tinha nenhuma habilidade para pagar contas e cuidar da casa.
Em sua mineirice, usava suas habilidades para escrever, cativar amizades, intermináveis papos sobre esquisitices e transgressões humanas, sempre com seu agudo olhar de escritor. Foi muito chegado ao notável quarteto de mineiros que veio para o Rio, os escritores Otto Lara, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e o psicanalista Hélio Pelegrino. Dava risadas ao me contar histórias de seus encontros, como a de um louco internado, atendido pelo Hélio, que costumava dizer em seus intervalos de lucidez; “... Pois o que é a vida senão aquela cuja vivemos a qual.”
Quatro filhos de dois casamentos, Manuela, Lucas, Priscila e Leandro. Para quem não o conheceu, dom Ricardo Gontijo pode ser encontrado em seus livros: Prisioneiro do Círculo, Civilização Brasileira; A Correnteza, romance, editora Best Seller; Sem Vergonha da Utopia, conversas com Betinho, editora Vozes; Pai morto, vivo, romance, Record, e Algumas lembranças, Forense. Tive pesadelos ao escrever a orelha de Pai morto. Digo ao leitor que ele “não terá dificuldades em se reconhecer no trágico e atormentado painel de relações familiares, que o autor usou como matéria prima de sua criação”. Aos livros, pois.
*Jornalista e escritor