Infelizmente, para desespero da história, a intelectualidade brasileira tem perdido personagens ilustres, mestres paradigmáticos, símbolos da identidade nacional. É com um imenso prazer que recebo a edição das memórias de Afonso Arinos de Mello Franco (Sobrinho) - 1905/1990 -, obra lançada pela editora Topbooks, intitulada “Alma do Tempo - Memórias”, com 1179 páginas.
Para o brasileiro médio, o personagem aparentemente só é lembrado pela lei que incluiu entre as contravenções penais a prática de atos resultantes de preconceitos de raça ou de cor (Lei nº 1.390, de 3 de julho de 1951), percursora da moderna legislação que personifica como crime a prática de racismo e injúria racial, a Lei Caó.
Essa edição das memórias traz, em quatro cadernos, 85 fotos do acervo pessoal que mostram o autor em família, na infância, adolescência e juventude, com a mulher, filhos e neto, no Senado Federal, chefiando a delegação brasileira na ONU, como Ministro das Relações Exteriores, na cerimônia de posse na Academia Brasileira de Letras, além do registro de sua convivência com políticos de vulto da época, que perfilam entre todos os espectros ideológicos de seu tempo.
Afonso Arinos, mineiro combativo, emerge na vida pública como advogado, atuando como promotor em Minas Gerais. Carreira curta, logo sucedida pela atividade acadêmica, professor de direito constitucional na Universidade do Brasil, além de profundo conhecedor de literatura e história política nacional, sendo autor de seminais para a compreensão da identidade nacional, com destaque para“Conceito de Civilização Brasileira” (1936) e “O Índio Brasileiro e a Revolução Francesa: as origens brasileiras da teoria da bondade natural” (1ª ed. 1937 e 2ª ed. 1976 ).
No mencionado trabalho, Arinos mostra o papel que o índio brasileiro teve na formação do conceito de bom-selvagem, tema de fundo da obra de Rousseau e base da formação do espírito de identidade contido na proposta do “Contrato Social” que inspirou a Revolução francesa.
Sua maior obra é a fantástica biografia de seu pai, “Um Estadista da República - Afrânio de Melo Franco e seu tempo” (3 v., 1ª ed. 1955; 2ª ed. 1976), uma incrível narrativa da história do parlamento e da representação internacional na figura de um personagem que foi o ministro das Relações Exteriores do Brasil em momentos críticos da República.
Na década de 40, Afonso Arinos e outras personalidades mineiras começaram a procurar uma forma de manifestar publicamente sua oposição ao Estado Novo e a defesa do pensamento liberal. Dos debates então travados por intelectuais e políticos do Estado, nasceu o Manifesto dos Mineiros, em cuja elaboração Afonso Arinos teve uma ativa participação ao lado do irmão Virgílio.
Em abril de 1945, como membro da oposição liberal, fundou a União Democrática Nacional (UDN), cujo manifesto inaugural foi redigido por João Mangabeira e pelo próprio Afonso Arinos. Na Assembleia Constituinte de 46, teve participação ativa na elaboração do texto final, em destaque o relatório da Comissão de Justiça.
Afonso Arinos, em sua vida parlamentar, ora na situação, às vezes na oposição, como no período do segundo governo Vargas, pautou sua representação pelo respeito aos direitos da minoria, na representação parlamentar e a inviolabilidade dos direitos humanos.
Em ocasiões com eloquência embargada em emoção, outras com fluidez e frieza, oscilou seu apoio à implantação do regime parlamentarista no Brasil, sendo ao final um dos artífices do projeto de lei que instituiu o modelo nos anos 60, como uma forma singular de acomodação ao governo João Goulart.
Como membro do governo Jânio Quadros e depois, por breve período, como integrante do gabinete do primeiro ministro Brochado da Rocha, Afonso Arinos desempenhou importante papel na formulação e implantação de uma nova política externa brasileira, abandonando o alinhamento automático com as posições do bloco ocidental liderado pelos Estados Unidos, e defendendo o restabelecimento de relações diplomáticas e comerciais com os países socialistas, a manutenção do reconhecimento do governo de Fidel Castro, em Cuba, além de um novo padrão de relacionamento com o mundo afro-asiático, baseado entre outros fatores na explícita condenação ao colonialismo.
A nova postura internacional brasileira preservava os princípios básicos estabelecidos entre as nações americanas, como a solidariedade coletiva, o anticomunismo e a autodeterminação dos povos.
Democrata, um conservador- liberal
Como parlamentar, sofreu um duro golpe com a implantação do regime militar e a negação de seu projeto de garantia aos direitos individuais, na constituição de 1967.Segundo Afonso Arinos, o capítulo referente aos direitos e garantias individuais do novo texto representava “uma completa distorção dos princípios fundamentais do direito constitucional”, o que forçou-o a abandonar a vida pública naquele momento e a voltar para o mundo da academia, assumindo, em tempo posterior, a direção do Instituto de Direito Público e Ciência Política (Indipo) da Fundação Getúlio Vargas.
À frente do Indipo, procurou colaborar com o processo de abertura política em curso durante o governo do presidente João Figueiredo (1979-1985), sendo ator e protagonista de duas comissões especiais para a construção de um projeto de Constituição capaz de promover a transição do regime de exceção ao democrático.
Afonso Arinos candidatou-se ao senado, como constituinte nas eleições de novembro de 1986 na legenda do Partido da Frente Liberal (PFL), que, juntamente com o PMDB, formou a Aliança Popular Democrática. Durante a campanha estabeleceu como objetivo geral de sua candidatura prosseguir na Assembleia Nacional Constituinte com o trabalho iniciado na comissão que presidira. Os principais pontos doutrinários de sua plataforma eleitoral incluíam a preservação do legado liberal clássico inserido no âmbito de uma democracia social, a defesa de um regime de governo misto, semelhante ao francês, que atribuísse ao presidente da República eleito pelo voto direto a manutenção da estabilidade constitucional e ao presidente do Conselho de Ministros a administração do país; a opção por um modelo de economia de mercado socialmente regulada; a adoção de uma política de nacionalismo econômico aberto seletivamente ao capital estrangeiro; e o respeito ao primado absoluto da autoridade civil em relação às demais forças da sociedade. Detalhe importante, foi eleito Senador pelo Estado do Rio de Janeiro, sem fazer qualquer tipo de campanha ou gesto eleitoral.
No momento em que o cenário político brasileiro carece de qualidade e competência, a leitura das memórias de Afonso Arinos, agora reeditada, pode colaborar para a formação e construção de um espírito de altivez e compostura do papel das instituiçõesrepublicanas.
Em tempo, tive o prazer e o privilégio de conhecer e ser aluno do ilustre professor, no curso de ciência política ministrado pela dupla Afonso Arinos e Vicente Barreto, na Escola de Pós-Graduação em Economia (EPGE) da Fundação Getúlio Vargas, uma experiência fascinante e enriquecedora.
Agradeço ao CPDOC/FGV a contribuição do verbete que contem a história da vida de Afonso Arinos, que muito auxiliou na redação da presente coluna: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/afonso-arinos-de-melo-franco