Ronald Laing foi um psiquiatra escocês considerado um dos mais importantes mentores do movimento anti-manicomial. Seu livro “O Eu Dividido” se tornou um clássico nos estudos sobre a loucura. Há uma passagem no livro, em que Laing discute o simbolismo do fogo na psicose. Ele escreve: “a imagem do fogo ocorre com frequência. O fogo pode representar as flutuações da vida interior do indivíduo. Pode ser uma força estranha e destruidora que o aniquilará.” Ele observa que alguns pacientes na fase aguda da loucura “dizem que estão em chamas, seu corpo está sendo calcinado”. Laing trás referências de sonhos de pacientes em chamas que antecipam episódios de psicose.
Em todas as culturas o fogo é temido e reverenciado por se tratar de uma energia incontrolável, com alto poder de propagação e destruição. No caso da loucura, de acordo com Laing, o fogo simboliza a tomada da personalidade pelo inconsciente, são labaredas de grande intensidade emocional, que assaltam e incineram o “eu coerente”: é o prenúncio da perda da razão.
Nessa semana, enquanto assistia o noticiário sobre as queimadas na Amazônia, essa passagem de “O Eu Dividido” não parou de me atormentar. Logo outra imagem de me veio à memória: o Museu Nacional da Quinta da Boa Vista sendo consumido pelas chamas, com transmissão ao vivo pela televisão e internet.
Minha divagação não parou por aí, agora era o fogo destruindo parte do Museu da Língua Portuguesa em São Paulo, que me vinha à mente. O quanto há de significativo na imagem da língua, o vínculo de comunicação e identidade de um povo, representada pelo Museu que narra sua história, sendo consumida pelas labaredas? Lembrei de Laing. Uma das características mais marcantes de uma personalidade assaltada pela loucura em alguns casos é a sua incomunicabilidade: num surto agudo, a língua deixa de ser o veículo do pensamento estruturado e passa a ser o veículo do delírio.
Nas minhas imagens de fogo outra memória trágica surgiu: a imagem do índio Galdino, incinerado enquanto dormia em Brasília. Galdino havia ido à Brasília para, junto com outras lideranças, apresentar reivindicações sobre da terra Caramuru-Paraguaçú ao então presidente Fernando Henrique Cardoso. Chegou tarde à pensão onde estava hospedo, não pode entrar, e dormiu num ponto de ônibus próximo. Acabou morto por cinco rapazes da elite brasiliense, que, por diversão e perversidade, jogaram sobre ele um líquido inflamável, atearam fogo a seu corpo e fugiram depois. Morreu no dia 20 de abril de 1997, um dia depois do dia do índio. Simbólico.
Enquanto as imagens do fogo na Amazônia ardiam em todas as telas do mundo, me paguei pensando, agora com Jung, que esse fogo talvez seja um símbolo pulsante do nosso inconsciente coletivo, bastante análogo à loucura individual dos pacientes de Laing. Uma sociedade que adoece coletivamente deixa queimar ou ateia fogo si própria. Incinera sua identidade, perde a razão, delira, enlouquece.
Esse fogo que não para de arder, calcinando a memória, a língua, a floresta, e os líderes indígenas que tentam defendê-la, simboliza a meu ver um estado de adoecimento coletivo. É a nossa alma coletiva que está queimando. Como observou o filósofo Gaston Bachelard, “Talvez não se tenha reparado o bastante que o fogo é muito mais um ser social do que um ser natural.” (A Psicanálise do Fogo - Editora Martins Fontes). É uma mensagem importante: é um fogo social, coletivo.
É possível que sociedades delirem coletivamente. A Alemanha nazista é o exemplo histórico mais típico de uma sociedade que debilitada, humilhada e desesperançosa, sucumbiu à loucura, e, liderada por um grupo de líderes perversos, foi conduzida ao abismo. Em 1936 Jung escreveu um ensaio intitulado Wotan, no qual analisa a possessão do povo alemão pelo arquétipo (sinônimo de enlouquecimento coletivo) de Wotan, o deus arcaico da guerra dos povos germânicos, cujo símbolo é o corvo. Vale citar uma passagem importante do texto que ilustra bem a ideia de Jung:
“Quando se trata de movimento da massa e não mais do indivíduo, cessam os regulamentos humanos e os arquétipos passam a atuar. É o que também acontece na vida do indivíduo quando este se vê diante de situações que não mais consegue controlar … Por fim, podemos observar com bastante nitidez o que pode fazer um ‘Führer’ diante de uma massa em movimento.”
São várias a características da loucura, individual e coletiva. A primeira, como Jung mostra no texto acima, é que ela é uma defesa contra uma ameaça, real ou imaginária, que se apresenta avassaladora para os indivíduos; a segunda é que essa defesa se dá sob forma de um delírio, muitas vezes paranóico, onde invasores e inimigos são partes estruturantes da narrativa delirante; uma terceira característica é a “certeza”: o louco não duvida jamais, tem uma certeza cega que representa uma ruptura com a realidade. Argumentos científicos, provas racionais, o consenso dos especialistas, nada disso funciona: o delírio é impenetrável. Em casos como a Alemanha Nazista, a certeza cega e os inimigos inventados foram fundamentais para a manifestação do delírio impenetrável à razão.
Se as imagens de fogo são prenúncio da loucura como afirma Laing, as sucessivas imagens de fogo que estamos testemunhando talvez sejam sintoma e prenúncio de nosso adoecimento coletivo. A sociedade brasileira embarcou em várias “certezas" nos últimos tempos. Existe, é claro, uma diferenciação entre o louco e o perverso. O louco tem certeza em seu delírio, é atormentado por perseguidores e se defende delirando contra essa perseguição. O perverso cria perseguidores de maneira deliberada, manipula o delírio, provoca conscientemente o caos: tem prazer com o sofrimento do outro. O perverso cultiva a pulsão de morte, anda sobrevoado pelos corvos de Wotan. Hitler, Mussolini, Stalin e outros são bons exemplos de perversos que insuflaram e surfaram na loucura coletiva de seus povos.
Se a certeza absoluta é uma característica da loucura coletiva, o exercício da dúvida sadia é um caminho rico para recobrar a sanidade, cultivar a vida e mobilizar a energia potente da Fênix, essa energia regeneradora que nos permite não sucumbir à pulsão de morte da perversão. Há vida na dúvida.
Flávio Cordeiro é psicólogo e psicoterapeuta