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Em busca de sentido

Pixabay -
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Em 1942, Viktor Frankl era um promissor psiquiatra austríaco de 37 anos que já havia publicado artigos científicos importantes, mantido uma correspondência ativa com Freud e assumido a chefia da problemática ala conhecida como “pavilhão das mulheres suicidas”, em um hospital psiquiátrico de Viena, onde cerca de 300 pacientes passaram por seus cuidados.

Ele havia se casado em 1941 com Tilly Grosser, enfermeira que também trabalhava no mesmo hospital. Nesse momento os nazistas consolidaram seu poder na Áustria, que havia sido anexada à Alemanha em 1938. Frankl, de ascendência judaica, teve a oportunidade de emigrar para os Estados Unidos, mas, mesmo ciente dos riscos envolvidos em sua permanência, decidiu ficar em seu país. Sua presença foi decisiva para salvar a vida de muitas pessoas. Ele recusou-se sistematicamente a recomendar a eutanásia para os doentes mentais a seus cuidados, contra a pressão da cúpula nazista.

Como muitos judeus europeus, Frankl teve como destino os campos de concentração. Durante três longos anos, o brilhante psiquiatra foi submetido a trabalhos forçados nos campos de concentração, incluindo Auschwitz. Nessa experiência, ele conheceu não apenas a face mais sombria da alma humana, mas também a sua maior força. Frankl se convenceu de que, quando o horror da guerra terminasse, pessoas como ele seriam importantíssimas para o novo mundo que precisaria ser re-construído a partir das ruínas físicas e humanas deixadas pela segunda guerra. Ele vislumbrava um futuro no qual muitas pessoas demandariam auxílio e cuidado para encontrarem sentido diante de suas inúmeras perdas e lutos. Vislumbrar um futuro, mesmo diante de um presente sombrio, foi sua receita de salvação.

Frankl transformou sua experiência dolorosa nos campos de concentração na prova mais contundente da validade de sua teoria, que afirma que as pessoas que sobrevivem às maiores catástrofes são aquelas que conseguem vislumbrar uma tarefa significativa para si no futuro. Vislumbrar uma tarefa significativa no futuro, um sentido maior, era precisamente aquilo que lhes restituía a humanidade e lhes infundia a necessária pulsão de vida, em um ambiente tão avassalador.

Um sentido maior envolveria não apenas a sobrevivência do indivíduo, mas também uma razão para existir, e Viktor Frankl comprovou, nos campos de concentração, que essa razão invariavelmente abrangia a preocupação com o outro; é o que Frankl chama de auto-transcendência, a capacidade de transcender aos seus interesses próprios e incluir o outro em sua perspectiva de futuro. Segundo ele, a auto-transcendência é a fonte principal de sentido para a retomada da vida após uma catástrofe pessoal ou humanitária. É ela que cria sentido para uma experiência de sofrimento. Ao invés de “por que comigo?” a questão fundamental se torna “o que é preciso fazer para que nosso sofrimento ganhe um sentido nesta vida?”. Frankl costumava citar uma frase de Nietzsche para reforçar esse ponto: “Aquele que tem um porque para viver pode enfrentar quase todos os comos”.

Os outros, que demandarão cuidado, podem ser filhos, cônjuges e familiares; podem ser seus alunos, se você for um professor; seus pacientes, se você estiver engajado numa profissão de cuidado; podem ser os funcionários, se você for um empresário; os cidadãos, se você for um líder político; podem ser as milhares de pessoas que esperam vacinas, se você for um cientista; ou as outras tantas que precisarão da arte para suportar a dureza da vida ou para aguçar seu senso crítico, caso você seja uma artista. Em cada um de nós há camadas de sentido aguardando para serem despertadas.

Vicktor Frankl já havia passado por três campos de concentração quando adoeceu em 1945. Para salvar-se, ele procurou se manter desperto, reestruturando o seu livro com papeis que roubara do escritório nazista no campo de concentração. O livro em questão se transformaria em um dos maiores clássicos da psicologia de todos os tempos: “Em Busca de Sentido”.

Quando a guerra terminou, o prisioneiro nº 119104 havia perdido o pai, a mãe, o irmão e a esposa em campos de concentração ou em crematórios, e, exceto por sua irmã, toda a família de Frankl havia perecido. A Europa estava destruída e muitos homens e mulheres como Frankl compreenderam a sua responsabilidade diante de um mundo a ser criado em novas bases. Frankl sistematizou sua abordagem psicoterapêutica e a batizou com o nome de logoterapia (logos = sentido). Ele morreu em 1997 aos 92 anos, tendo cuidado de milhares de pessoas e treinado centenas de psicoterapeutas, tendo escrito diversos livros, hoje traduzidos para mais de 30 idiomas. Morreu tendo dado sentido a sua vida e honrando sua experiência traumática e a de muitos outros que a vivenciaram.

Diante do grande desafio que temos enfrentado nas últimas semanas e diante dos imensos desafios que ainda vamos ter pela frente como indivíduos e como coletividade, a história de Frankl e a sua abordagem psicoterapêutica, que vêm da experiência e não do laboratório, podem nos ajudar a refletir sobre a importância da auto-transcendência em momentos de crise; da importância de nos conectarmos com um sentido que nos mobilize; da co-responsabilidade que precisaremos cultivar em detrimento de um individualismo suicida; da importância de lembrarmos que muitas gerações antes de nós já enfrentaram períodos drásticos e conseguiram vislumbrar um futuro e criar um mundo melhor para si mesmos, para suas famílias e para as gerações que as sucederam.

Finalizo a coluna desta semana com os versos de Milton Nascimento e Fernando Brant:

Mas é preciso ter manha

É preciso ter graça

É preciso ter sonho, sempre

Quem traz na pele essa marca

Possui a estranha mania

De ter fé na vida

Fiquem em casa!

Psicólogo e Psicoterapeuta de Orientação Junguiana