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Sábado, 10 de maio de 2025

Crítica show/Judas Priest: Uma experiência religiosa

André Arruda -
Judas Priest
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Judas Priest não é apenas um quinteto inglês de heavy Metal que faz 50 anos de carreira em 2019. Judas Priest é uma experiência religiosa. Não, eu não vou ser isento neste texto, fica o aviso.

O Judas Priest nasceu em Birmingham, em 1969, nos ecos do pós segunda guerra. Birmingham, no centro da Inglaterra, o midlands ou Black Country, era uma espécie de Cubatão dos anos 70, uma cidade industrial, poluída e lúgubre que refletia a reconstrução da Grã Bretanha. Os jovens podiam aspirar, no máximo, um vaga de operário ou um cargo de gerente em uma das siderúrgicas da região. Foi numa fábrica dessas que outro cidadão ilustre, num acidente, perdeu as pontas do dedos da mão direita em seu ultimo dia de trabalho, antes de se dedicar totalmente à guitarra: Tony Iommi. Tony, que é canhoto, se inspirou em outro guitarrista com um problema parecido, Django Reinhardt, para superar o trauma. Lutou contra o destino, reaprendeu a tocar guitarra e fundou o Heavy Metal com outros malucos: Ozzy Osbourne, Geezer Butler e Bill Ward. Nascia a entidade Black Sabbath.

Macaque in the trees
Judas Priest (Foto: André Arruda)

Esse DNA do metal está no Judas Priest. No show deste domingo (11), vários marmanjos quarentões e cinquentões foram flagrados em lágrimas testemunhando um show espetacular. A banda está finalizando sua turnê mundial do seu 18 álbum de estúdio, Firepower, que marca um renascimento da banda, quando todos acreditavam que a aposentadoria era certa. O Brasil foi abençoado com quatro datas, Curitiba, São Paulo, Rio e Belo Horizonte, no próximo dia 14.

A banda quase acabou em 1992, quando o cantor Rob Halford anunciou, para espanto mundial, que estava saindo fora. Rob não é apenas um vocalista; é a cara do Judas e considerado o maior cantor vivo de heavy metal, superado apenas por Ronnie James Dio, ex-Rainbow, Black Sabbath e Dio, morto em 2010, vítima de um câncer de estomago. Rob, barítono, inspirado por Robert Plant, cantor do Led Zeppelin e influência confessa, inaugurou o estilo operático no rock pesado, com gritos agudíssimos e sem falsete, num alcance de cinco oitavas. Rob era O Judas Priest. Alegou cansaço e queria outros voos. Sua carreira solo gerou o pesadíssimo Fight, que tocou aqui 1994, um metal mais moderno que o Priest da época. Depois afirmou que o metal estava morto e flertou com tecno industrial, criando o 2wo, com produção de Trent Reznor, do Nine Inch Nails. Nessa época o Judas Priest procurava outro vocalista, que apareceu quase como um conto de Cinderela. Um garoto de Akron, Ohio, Tim Owens, cantava numa banda chamada Surgical Steel, tocando covers de ... Judas Priest. O baterista Scott Travis (do Judas) conhecia essa banda e recomendou Tim. Esse enredo inspirou o roteiro de um filme, Rock Star, com Mark Wahlberg no papel do vocalista substituto. Num contragolpe, Rob Halford, em entrevista à MTV americana, sem alarde, assume sua homossexualidade; como ele mesmo disse, o segredo mais mal guardado do rock. Tim grava dois bons álbuns com o JP, Jugulator e Demotilion.

Rob desiste de sua aventura tecno e volta para o metal, com a banda que leva seu sobrenome. O álbum de estreia, não por acaso, se chama Resurrection. É um discaço. O Halford tocou no Rock in Rio III, antes do Iron Maiden, num show antológico que pode ser visto na web. Em 2003 o Judas Priest anuncia a volta dele à banda. O resultado é Angel of Retribution, um bom disco.

O Judas Priest é um tripé. Dois guitarristas e um vocal. A banda cristalizou o formato de duas guitarras tocando juntas no rock pesado, para acrescentar peso e harmonia. O comum, nos anos 1970, era um guitarrista e um teclado, como o Deep Purple. Mas a banda foi além. Baixo e bateria forneciam o peso, como no AC/DC, sem grandes coloridos. Os guitarristas KK Downing e Glenn Tipton estão no panteão do rock por esse pioneirismo. Eles e Rob são os compositores da banda. KK, nascido Kenneth Downing, original de Birmingham, lançou há pouco mais de um mês sua autobiografia, Heavy Duty, Days ans Nights with Judas Priest. É honesta e confessional. Explica sua infância paupérrima – a família se sustentava numa espécie de bolsa família britânica - o pai abusivo e sua complicada relação com o colega Glenn Tipton, retratado como distante e egocêntrico. Rob é descrito como tímido. Sua homossexualidade é notada logo nos primeiros contatos, em 1969. O baixista e fundador do Priest, Ian Hill, fala para KK: ‘’Nós seremos um Queen’’, numa alusão óbvia a Fred Mercury. A orientação sexual de Rob, segundo Ken e repetida várias vezes no texto, nunca foi uma questão na banda.

KK protagoniza outro choque na comunidade metálica: Ele sai em 2011, logo após o álbum Nostradamus, o segundo após a volta de Rob. KK, um jogador de golfe fanático, abre seu próprio campo no interior da Inglaterra. Esse ano, porém, após erros de gestão, está vendendo tudo, inclusive seus direitos sobre as músicas do Judas Priest. A banda entra dilema: encerra tudo ou procura outro guitarrista? Entra em cena o ‘’jovem’’ Richie Faulkner, guitarrista da banda de Lauren Harris, filha do baixista Steve Harris, o chefe do Iron Maiden. Richie é louro como KK e preenche bem a vaga. Glenn Tipton, lembra? Assume de vez sua posição como diretor musical do grupo.

Quem assiste aos shows na web nota que a banda não estava bem. A velocidade das músicas diminuiu, o punch não era mais o mesmo. Rob não tinha o desempenho de antes, os agudos, sua marca, diminuíram. Glenn parecia cansado. A banda leva 4 anos para compor novo material desde Redeemer, um trabalho pouco inspirado. Em 2017 começam as gravações das novas músicas. As mensagens nas redes sociais da banda pedem "mais riffs, músicas curtas e gritos. Não reinventem a roda’’. Esses pedidos remetem à fase de ouro, formada pelo trio de discos Stained Class, Killing Machine e British Steel. Se um ET vier à Terra e te perguntar o que é Heavy Metal, as nove faixas de British Steel, o "disco da gilete’’, são a resposta.

A banda atende aos pedidos. O resultado é Firepower. 14 faixas de altíssima voltagem, produzidas por Andy Sneap e o veterano Tom Allom, que produziu British Steel e o antológico Screaming for Vengeance. Tom conhece a banda como poucos. A sonoridade é um mix de anos 80 com novos timbres, sem os exageros de ‘’reverb’’ dos nos 90. Firepower é considerado o álbum de metal de 2018.

Na véspera da turnê mundial, Glenn Tipton anuncia que não vai tocar. Revela que está com mal de Parkinson há dez anos, e dessa vez não consegue mais executar as músicas. Andy Sneap, o produtor e guitarrista, assume a guitarra. É como o Rolling Stones sem Keith Richards. E aí? Richie Faulkner assume o protagonismo. Evoluiu muito desde sua entrada. Hoje, não é errado dizer que o Judas Priest é Rob Halford e Richie Faulkner. Glenn ainda faz aparições, mas só nos bis pela Europa e EUA, nas músicas mais simples, como Metal Gods e Living after Midnight, com acordes mais soltos. "Rob achou um Randy Rhoads pra chamar de seu’’, uma comparação direta com Ozzy Osbourne, quando o ex vocal do Sabbath reviveu, literalmente, sua carreira ao encontrar o guitarrista virtuose Randy Rhoads, morto depois num bizarro acidente aéreo.

E como se não bastasse, Rob Halford, de 67 anos recém completados, passou por uma severa cirurgia de coluna há quatro anos. Chegou a ser cadeirante. Quando Firepower foi lançado, o comentário geral: O que aconteceu com Rob? Ao contrário dos tons médios dos últimos anos, ele consegue o artigo raro no pop: a volta no tempo. Mais lento no palco, é claro, seu vocal hoje remete às célebres performances dos anos 1980. E a entrega é total. Em Painkiller, uma das m'suicas mais difíceis de se cantar no gênero, a plateia fica de boca aberta, eu vi.

O público do heavy metal está entre os mais exigentes, como o de música clássica e o jazz. O brasileiro não foge disso. A banda apresentou um impressionante set list de 16 músicas, quase duas horas de show. A afinação meio tom abaixo, mais confortável para a voz, acrescenta peso as canções. O cardápio musical é uma viagem pelos 49 anos da banda, cuja execução é impecável, desde The Ripper, a mais antiga da lista, gravada em 1974, até a recente Firepower, a mais rápida composta pela banda; tudo é mais rápido, mais pesado e mais bem executado. No heavy metal não há "cai cai’’ ou corpo mole. O Judas Priest, como uma boa banda de rock pesado, entra para ganhar o jogo. Andy Sneap, respeitosamente, assume seu posto de coadjuvante e deixa os holofotes para Rob e Richie. Faulkner está totalmente à vontade e interage com o público todo o tempo, chegando quase a perder uma entrada num trecho de The Ripper. A banda, ao contrário de muitos outros artistas, não economizou e trouxe toda a sua produção de iluminação e palco. Ponto para a promoção do evento.

O Brasil foi homenageado em Freewill Burning, uma música rápida cujo tema é ímpeto e velocidade. Fotos do ícone Ayrton Senna são mostradas no telão, no ultimo terço da musica até o fim. O tom político foi notado num rápido discurso de Rob antes de ‘’No Surrender’’, dizendo que o metal sempre representou uma resistência e inconformismo. Não havia esse discurso nos shows dos Estados Unidos e Europa. Rob Halford nunca foi propriamente um militante gay de empunhar bandeiras, sempre afirmou que seu protagonismo e presença falavam por si e que a comunidade heavy metal sempre o aceitou desde o primeiro momento de seu "outing’’.

O guitarrista Richie Faulkner, um fanático pela mitologia Guerra nas Estrelas, afirmou em entrevista recente, que compara Judas Priest aos filmes de Darth Vader, Han Solo, Luke Skywalker e Princesa Lea, onde o Bem sempre vence: ‘’Judas Priest is about Hope’’, é sobre esperança. Está certíssimo.

* Especial para o JB

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crítica | jurada | rock | show