Esquisito é o mínimo que se pode dizer do título de um dos filmes brasileiros mais esperados dos últimos anos na seara internacional da animação: “Bizarros peixes das fossas abissais”. E era mais esquisito ainda: “Minha Bunda É Um Gorila”... assim, com cada palavra em caixa alta, pois é o nome de uma super-heroína, cuja região glútea dá lugar a um símio gigante. Essa excêntrica premissa norteia o primeiro longa-metragem de um premiadíssimo cineasta que é visto lá fora como o mais inquieto animador do Brasil: Marcelo Marão, diretor nascido em Nilópolis, há 47 anos. Pela estrada afora, indo bem sozinho, ele dirigiu 14 curtas-metragens, que receberam 120 (!) prêmios em 605 (!!) festivais pelo Brasil e o mundo. Os últimos foram no Canadá e em Portugal, pelo curta “Até a China”. Ele, em paralelo, é um aglutinador de talentos, aqui e no exterior, tendo sido um dos criadores da Associação Brasileira de Cinema de Animação e tendo lecionado sobre o tema em diversas instituições universitárias do país.
“O primeiro filme eu cometi em 1996, mas as primeiras animações foram feitas, como flipbooks, nas orelhas dos bloquinhos do armarinho do meu pai em Nilópolis, nos anos setenta”, diz o cineasta que corre a todo vapor para finalizar “Bizarros peixes das fossas abissais” no prazo exigido por suas fontes de fomento e pelos festivais mundiais que anseiam por um trabalho inédito dele. Na entrevista a seguir, ao JORNAL DO BRASIL, Marão disseca o projeto e faz um balanço da atual cena animada brasileira.
JORNAL DO BRASIL - Quem é a heroína de seu filme – a guerreira que grita “Minha bunda é um gorila!” e ganha superpoderes - e de que maneira ela dialoga com o atual pleito pelo empoderamento feminino?
MARÃO - Escrevi o argumento deste meu primeiro longa há mais de dez anos. O maior trunfo em poder realizá-lo agora é ter uma equipe formada majoritariamente por geniais e talentosas mulheres. Nossa equipe é formada por mulheres na animação, na produção, na finalização, no som. Sendo meu primeiro longa, estou “neofitamente” compartilhando muitas informações do filme que - na época dos curtas - ficavam guardados comigo. E isso tem feito toda a diferença. Porque a protagonista do filme é uma mulher. É um filme esquisito, com personagens estranhos e situações bizarras, mas cujo roteiro tem muitas opiniões e experiências minhas. E ouvir a opinião das mulheres que eu tanto admiro e com quem trabalho sobre as cenas é algo inédito pra mim e que tem sido mais importante pra mim do que o próprio filme. Estou aprendendo e mudando e agradeço imensamente a elas, que têm me ensinado. E estou muito mais feliz com a protagonista hoje do que com a proposta de dez anos atrás. Ela é uma chefe de família. Ela mantém a família unida. E é ela quem luta. E luta muito.
Em que pé está o seu desenho animado hoje, quanto ele custou e qual é o tamanho da sua equipe?
Passei o primeiro ano estruturando e reestruturando a logística de produção, porque é um filme autoral, onde não dá pra seguir parâmetros organizacionais de outros longas (nacionais ou não). Na maioria dos longas de animação o diretor dirige e os animadores animam. Embora eu seja o roteirista/diretor, o que mais quero é animar este filme! E faz dois anos que viro as noites de domingo a domingo desenhando na mesa de luz (porque sou velho e ainda desenho a lápis no papel). Temos vinte minutos prontos; faltam cinqüenta e um. O prazo é maio de 2020. O orçamento é de pouco mais de um milhão e meio (o mais barato de todos os longas de animação em produção no Brasil atualmente - acredito eu - e quatrocentas vezes mais barato que próximo Toy Story, da Pixar). Durante os quatro anos de produção serão envolvidos quase cem profissionais no total, mas a equipe permanente é de aproximadamente uma dúzia de pessoas trabalhando de 2017 até 2020, incluindo a produtora executiva Letícia Friedrich, a animadora Rosaria, o montador Alessandro Monnerat, o cenarista Wesley Rodrigues, o animador Fernando Miller, a finalizadora Stephanie Romano, o músico Duda Larson, a supervisora de som Ana Luiza Pereira e os assistentes de arte e de produção.
Qual é o lugar da animação adulta autoral na indústria do cinema brasileiro hoje?
Este é o melhor momento dos últimos cento e um anos da animação brasileira e isso se deve fundamentalmente ao êxito e recepção positiva da animação adulta autoral no âmbito dos festivais, que construiu e consolidou um gigantesco público interessado em animações que tivessem temas não pueris (fossem densos e maduros ou gratuitamente escatológicos e eróticos). A consistência da produção autoral adulta se apresentou desde o final dos anos 90 até os recentes anos 10 em qualidade e quantidade, fortalecendo toda uma geração de realizadores que escolhiam a animação para realizarem seus curtas e longas. E até séries. O mundo da TV tem muita paura pecuniária, morre de medo de fracassar se fizer algo diferente das mediocridades infantis populares e aceitas. É admirável cada vez que aceitam e topam e ousam avançar (porque o verbo é esse: “avançar”) com uma série como “Super drags”, do incrível Anderson; primeiro animação original brasileira da Netflix. É louvável quando um veterano como o devastador Otto Guerra faz um longa que mescla os personagens antigos da Laerte com a nova e avassaladora fase nova da cartunista no que eu acho que será o melhor longa de animação da história do Brasil. É invejável quando o diretor Cesar Cabral faz outro longa adulto baseado em quadrinhos - desta vez do lendário Angeli - em virtuoso stop motion para o público exclusivamente adulto (e que tenho certeza de que será também o outro melhor longa de animação da história do Brasil).
Como você avalia o espaço para o cinema animado brasileiro no cenário internacional?
Quando eu comecei a participar de festivais com meus primeiros curtas, era raro ter alguma animação brasileira selecionada. Na última década, era raro não ter uma animação brasileira selecionada. E é cada vez mais comum que um de nossos filmes seja premiado! Viajei a muitos festivais de animação no passado, mas ultimamente ouço “Vous êtes brésilien?” com regozijo. Somos respeitados como nunca havia acontecido antes. É uma sensação fantástica.
* Roteirista e crítico