O livro foi lançado pela Martins Fontes em 2011. Mas trata-se de um clássico brasileiro, e um clássico é um clássico, ou seja, é eterno. As “Cenas da vida amazônica”, de José Veríssimo, foram publicadas pela primeira vez em 1886 e 1887. Não tiveram muita repercussão, mas, na segunda edição, a de 1899, tiveram a aprovação de um grande leitor, Machado de Assis. Em sua crítica elogiosa, o Bruxo destaca “o quotidiano da existência e dos costumes, que o autor pinta breve ou minuciosamente, com um grau de realismo que tinha a ver com contraste entre o meio e o homem”. Já a terceira edição foi de 1957.
Há uma semana, o volume, que se encontrava logo na primeira estante da Livraria Travessa de Ipanema, estava sendo folheado pelo historiador Eduardo Bueno e me despertou a atenção. Traz na capa um índio tarairiu ou tapuia, pintado por Albert Eckhout em 1643, e seu conteúdo foi organizado por Antônio Dimas, professor da USP, que também escreveu a introdução.
Apesar da data da edição, não aguentei. Resolvi comprá-lo para lê-lo e escrever sobre ele. Respeito José Veríssimo, crítico literário consagrado na virada do século XIX para o XX, editor da “Revista Brasileira”, um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras. Valeu a pena. A leitura é vertiginosa. Veríssimo nos mergulha na natureza amazônica a ponto de nos deixar sem fôlego. Podemos até dizer que a vibrante, luxuriosa, esmagadora natureza do Equador é um dos principais personagens dos contos reunidos no livro, que tem uma pitada de regionalidade.
Em suas descrições, nos perdemos em matas folhudas, fechadas, entrelaçadas por cipós, cheias de flores e altas palmeiras, áreas pedregosas ou pantanosas, serras, colinas, com pássaros de trinados os mais variados no topo das árvores, e bichos inofensivos ou perigosos, como insetos, a rasteira cobra ou a felina onça, sem falar nos peixes e jacarés que povoam as lagoas, os lagos e os rios, afluentes do Amazonas. Entre as flores aquáticas, há uma de beleza ímpar, a vitória-régia.
São em número de quatro, os contos. Além disso, o livro oferece cinco esbocetos ou pequenos textos. O estilo faz a passagem entre o romantismo e o realismo, já que a força da natureza é uma característica da escola romântica. Lembremo-nos da descrição da Mata Atlântica fluminense feita por José de Alencar em “O Guarani”. Por outro lado, a maioria dos personagens são tapuios, mulatos ou mamelucos. De origem indígena ou africana, miscigenada aos portugueses. Relembrar nossa origem indígena ou africana é outra herança do romantismo.
Quanto ao realismo, as tramas são duras, cruas, quase que naturalistas. Mocinhas se perdem nas mãos de sedutores, os regatões ou intermediários do comércio local. Estava-se no auge da seringa, com Manaus vivendo os primeiros tempos áureos da borracha, que foram de 1879 a 1912. Bons homens ingênuos, com sonhos de riqueza, eram explorados por malfeitores, capatazes dos ricaços, e endividavam-se, perdendo tudo o que possuíam. Tudo isso José Veríssimo nos conta de forma impiedosa, tendo ao fundo o cenário cheio de vida da floresta amazônica, de seus portos e suas vilas ribeirinhas.
As narrativas mais longas se chamam “O boto”, “O crime do tapuio”, “O voluntário da pátria” e “A sorte da Vicentina”. Mulheres inocentes se dão muito mal nesses contos. José Veríssimo é uma espécie de protofeminista, querendo provavelmente alertar o sexo feminino sobre a concupiscência e má-fé masculina. No primeiro conto, “O boto”, Rosinha é enganada por um homem que não vale nada, Antonio. Ele a seduz sob uma lua prateada, prometendo-lhe casamento. O que não ocorreria, é claro. E ela ficaria grávida. A família e a babá tapuia, que tinha facilitado os encontros de sua querida filha de leite com o sedutor, resolvem dizer que a moça tinha sido alvo do desejo de um boto cor-de-rosa, o famoso ser encantado das águas, semelhante a um golfinho, que segundo lendas indígenas conquista as mocinhas em noite de lua cheia.
“O crime do tapuio” talvez seja o melhor dos quatro contos. Pelo menos nele a protagonista tem um final mais feliz. E a história é ótima. Logo de início, o tapuio enfrenta uma cobra sucuri com uma faca e a mata. Ele era muito amigo de uma menina torturada por sua dona, uma velha rabugenta que vivia a bater-lhe e a tratá-la como escrava, noite e dia, fazendo-lhe os pedidos os mais estapafúrdios possíveis. A rapariguinha cabocla, que havia sido negociada pelos pais, se chamava Benedita, e sua dona, Bertrana. Um dia, o índio José Tapuio, que também trabalhava na casa de Bertrana, cansado de ver o sofrimento da menina, pede para ela arrumar as poucas coisas que tinha e a leva embora.
Depois ele será acusado de estupro e assassinato. No julgamento, perguntavam o que havia feito com Benedita e ficava mudo. José Tapuio, que tinha força para enfrentar sucuris, não sabia lidar com juízes e advogados. Foi condenado. Mas acontece que Benedita aparece sã e salva no povoado. Não havia acontecido nada com ela. O juiz chama então José Tapuio e pergunta por que ele ficara mudo. Explica que assim agira para o bem da pequena. Não queria que ela voltasse para casa de Bertrana. Ele a havia levado para a casa dos pais de volta, denunciando os maus-tratos, e lá ela ficaria.
“O voluntário da pátria” é sobre o sofrimento de uma mãe que perderá o filho para o exército brasileiro durante a Guerra do Paraguai. Quando ele é preso para ir “voluntariamente” guerrear, ela tentará salvá-lo de tudo o que é maneira, fazendo mil pedidos aos poderosos, mas ninguém a escuta. Médicos e políticos queriam muito dinheiro em troca da libertação do rapaz, que se chamava Quirino, mas sua mãe, Zeferina, é claro que não tinha tanto dinheiro assim. E o pouco que tinha foi embolsado por espertalhões, que não impediram que seu filho fosse um dos valorosos voluntários da pátria, embarcados no Amazonas.
Vicentina é outra história extremamente tristonha. Vicentina ganhará uma herança de um padrasto e será explorada por advogados, que estava de olho em seus trocados. Deflorada pelo filho de um tutor, acabará sendo obrigada a se casar com um homem brutal, que vivia embriagado e não lhe dava paz. Num dia de desespero foge de casa com a filha e se perde na floresta sombria e emaranhada. Exausta, atravessa áreas sem fim. Num dado momento deixa a filha cair no chão, por achar que uma onça estava por perto. Ela se salva mas a filha é comida pela onça. Vicentina ainda se casará de novo, mas acabará por levar vida de mulher perdida.
Os esbocetos são deliciosos. Pequenos quadros da vida amazônica. Há mulheres livres, como a lavadeira e a que dançava lundum, que ficariam presas ao se casarem; a descrição de um serão, em que graciosas moças sentadas em esteiras bordam, marcam lenços, fazem bilro e varandas de rede, espetando às vezes os dedos com as agulhas, e uma mameluca muito formosa que gostava de flores no cabelo, vestidos de cetim, e se virava lavando, cozendo, fazendo cheiro (perfume de flores) ou vendendo doces da festa de Nazaré. O problema com as mamelucas é que, apesar de toda a formosura e do livre jeitão de cigana, costumam cair de amores, e quando se apaixonam também sofrem outra queda, tendo uma filhinha sem pai que terá o alegre e triste destino de mameluca como foi o da mãe.
Não detalharei aqui o esboceto em que é descrita a vida em um seringal. Nele, há homens que fracassam na seringa, mulheres que também caem na vida, e regatões espertíssimos e exploradores. Deixo para vocês lerem. Assim como deixo para vocês lerem o resumo da vida de José Veríssimo (1857-1916), no Pará e no Rio de Janeiro, feito por Antonio Dimas na introdução, só remarcando que o crítico literário, historiador e contista consagrado por Machado foi o autor de livros importantíssimos, como é o caso de “Estudos da literatura brasileira”, “Homens e coisas estrangeiras” e “História da Literatura Brasileira”.
Não poderia deixar de mencionar, no entanto, que foi na sala da “Revista Brasileira”, por ele editada no Rio, que ocorreram as primeiras reuniões dos intelectuais, escritores e diplomatas que seriam os fundadores da Academia Brasileira de Letras, como o próprio Veríssimo, Machado, Joaquim Nabuco, Rodrigo Octávio, Salvador de Mendonça, Lúcio de Mendonça, Inglês de Souza, José do Patrocínio, Olavo Bilac, Valentim de Magalhães, Coelho Neto, Alberto de Oliveira, entre outros. Mesmo assim, ele se afastaria da ABL em 1912, por ter discordado da eleição de Lauro Müller, político e engenheiro. A Academia, a seu ver, deveria privilegiar os escritores.
*Jornalista e escritora
------
SERVIÇO
Cenas
da vida amazônica
De José Veríssimo
Martins Fontes, 328 págs
R$ 64,90