
Escondido por 68 anos, em raros 130 exemplares, o ensaio ilustrado que João Cabral de Melo Neto (1920-1999) escreveu sobre Joan Miró (1893-1983) acaba de ser lançado, de forma inédita no Brasil, em um período extremamente fértil sobre a obra do artista catalão, que, também em 2018, ganhou sua mais detalhada biografia e uma ampla exposição, ainda em cartaz, no Grand Palais, em Paris.
Batizado com o próprio nome do pintor, escultor, gravurista e ceramista, “Joan Miró” foi publicado originalmente em 1950, em Barcelona, em português – somente a folha de numeração, com os autógrafos do poeta e do artista plástico, foi escrita em catalão. Essa edição trazia três gravuras inéditas de Miró, feitas especialmente para a publicação.
No mesmo ano, outra edição saiu na França, na língua local e sem as ilustrações originais, mas trazendo um ensaio fotográfico com Miró e seu impressor Enric Tormo trabalhando nas gravuras.

Em 1952, os versos do poeta e diplomata sobre o artista até foram publicados no Brasil, na coleção “Cadernos de Cultura”, do MEC (Ministério da Educação), mas sob a padronização gráfica da série – que excluiu as gravuras e as fotografias –, o ensaio acabou descaracterizado da concepção artística à qual era diretamente conectado.
Esses elementos gráficos são resgatados na versão publicada agora pela editora Verso Brasil, que faz uma junção das edições catalã e francesa, incluindo tantos as gravuras de Miró quanto as fotos de seu making of. Traz ainda uma foto de Joan Miró e João Cabral de Melo Neto, lado a lado.
“Aqui, ele havia saído padronizado na coleção do MEC: sem as gravuras originais nem as fotos. A gente trouxe essas duas coisas de volta e as reuniu em uma única edição”, conta Valéria Lamego, editora-chefe da Verso Brasil e organizadora do livro, que se baseou no exemplar nº 125 da edição original, após extenso garimpo em acervos de colecionadores. “O Miró ficou muito encantado com o texto. Ele mostra o gosto pelo novo que estava vendo”, analisa ela, que, há dois anos, havia relançado outro livro raro do pernambucano: “Aniki BóBó”, também inspirado em artes visuais (no caso, desenhos do primo Aloísio Magalhães) e publicado inicialmente em 1958.
Em um trecho que vem pouco após o início do ensaio, Cabral escreve que “Miró fez explodir as normas da composição renascentista. O sentido e a história dessa explosão explosão: a história de sua luta contra o estático e, assegurada sua vitória sobre este, a maneira como se entregou às possibilidades de um ritmo livre de qualquer limitação”. Em seguida, situa historicamente como, em 1924, Miró“abandona a terceira dimensão e toda a sólida estrutura que se pode notar em sua primeira fase” e “começou a pintar (...) verdadeiras cifras da realidade”, ao tomar contato com o Surrealismo.
“Entretanto, Miró – ao contrário de muitos deles – levou mais ao extremo o caminho iniciado”, acrescenta, sobre o artista que, ao longo de sua carreira, nunca se alinhou com um movimento específico. “A originalidade de Miró em relação a eles está em que buscaria realizar de maneira inteiramente diferente essa proposição inicial. A Miró, e seu espírito artesanal, quase, haveria de soar estranhamente a estética antiplástica dos surrealistas”, prossegue, mais adiante.

Embora não tenha tentado fazer uma biografia do pintor, João Cabral de Melo Neto situa influências que ele sofreu da Guerra Civil Espanhola (1936-1939) e do consequente regime ditatorial comandado por Francisco Franco até sua morte, em 1975, e que foi especialmente prejudicial para os artistas catalães devido ao seu caráter nacionalista.
Quando o jovem diplomata de 27 anos chega a Barcelona, em 1947, Miró, aos 54 – exatamente o dobro da idade do brasileiro – já havia voltado a morar em sua cidade natal, após viver em Paris até 1939, quando eclodiu a 2ª Guerra Mundial; e Palma de Mallorca, terra de sua mulher, Pilar, até 1942. Expor, entretanto, era difícil. Só em 1949, ele consegue montar uma pequena exposição na Catalunha – grande, somente em 1968, com o franquismo já em decadência.
Por ser um representante diplomático, João Cabral de Melo Neto, que ficaria até 1950 em Barcelona, circulava mais livremente ante as autoridades espanholas e conhecia artistas locais, como os que editavam as revistas “Ariel”, “Dau au set” – ambas clandestinas – e “Cobalto 49”, passando também a trabalhar com tipografia, enquanto repensava a forma de sua escrita.
“Cabral participa de alguma forma da retomada da arte catalã. Não diretamente, mas ao se envolvido com esses artistas e grupos que se envolveram, como do ‘Dau au Set’ e do ‘Cobalto 49’”, avalia Ricardo Souza de Carvalho, professor de Literatura Brasileira na USP (Universidade de São Paulo) e autor do livro “A Espanha de João Cabral e Murilo Mendes”, que assina o posfácio do livro. “Ele se interessou pelo que estava sendo cerceado: o uso da língua catalã, artistas de vanguarda… Para o Cabral, se não fosse isso, não sei se teria tido o mesmo impacto”, acrescenta.
Um caso único de inversão
Embora Joan Miró tenha ilustrado livros de diversos poetas contemporâneos, como René Char, Michel Leiris e Pablo Neruda, o livro que João Cabral de Melo Neto lhe dedica representa, para o professor de literatura Ricardo Souza de Carvalho, “acabou sendo um caso único de inversão, em que a obra do artista plástico inspira o texto do poeta, ao contrário do que sempre acontece nesses casos – e embora não se trata de um livro de poesia, mas de uma análise da obra artística”.
Entre tantos artistas em atividade em Barcelona, Joan Miró foi aquele de quem João Cabral de Melo Neto mais se aproximou, por admiração e como amigo. Carvalho ressalta que eles se encontravam semanalmente e que uma casa do pintor inspirou o poema “Campo de Tarragona”, de “Paisagens com figuras”.

A inspiração, segundo o professor, se dá principalmente em relação à forma de escrever, porém. “A reflexão que o Cabral faz, naquele momento, é importante para ele repensar a sua própria escrita, sobretudo com o fazer artístico, o modo de composição de um artista”, afirma Carvalho, que aponta também um retorno do foco do poeta às questões de sua cidade, Recife. “É uma reflexão sobre a poesia e a própria situação do Brasil e de seu estado natal, Pernambuco, tanto que, quando volta a escrever poesia, ainda no final da estada dele em Barcelona, é o ‘Cão sem plumas’, que faz referência ao Rio Capibaribe”.
No sentido inverso, a amizade com Miró ajudou Cabral a se aproximar do trabalho gráfico. “O interesse dele pela tipografia surge lá em Barcelona, quase concomitante a essa convivência – por recomendação médica, Cabral tinha que fazer atividade física e esse trabalho convergia. Mas acredito que o Miró, que já trabalhava com poetas na concepção de livros, o tivesse estimulado”, diz o professor de literatura da USP. “Os dois iam trabalhar juntos em um livro, que acabou não acontecendo. No lugar, o Cabral escreveu sobre o Miró”.
Grande exposição em Paris
Em cartaz desde outubro no Grand Palais, em Paris, a exposição “Miró” vai até 4 de fevereiro, com cerca de 150 obras do artista, selecionadas dos acervos de diversos museus ao redor do mundo e coleções particulares. Divididas por 16 temas, elas se estendem por sete décadas de carreira de Joan Miró, desde seus desenhos e pinturas iniciais, passando pela influência do surrealismo e de outros movimentos – nos quais nunca parou –, pela oposição ao franquismo e chegando até seu período final, após a redemocratização espanhola, sempre mantendo sua liberdade de formas e profusão de cores.
Pelas salas e corredores do Grand Palais, são desenhos, esculturas, cerâmicas e muitas pinturas. Somente tapeçarias, figurinos e cenários de teatros ficaram de fora pela fragilidade que dificultaria seu transporte.

Com 112 obras (41 pinturas, 26 gravuras, 22 esculturas e 20 desenhos), o catalão teve sua maior exposição no Brasil também recentemente. “Joan Miró: a força da matéria” ficou exposta em São Paulo e em Florianópolis, com produção do Instituto Tomie Ohtake com curadoria de Paulo Myada junto à Fundação Joan Miró, de Barcelona.
Biografia com documentos inéditos
Com base em documentos inéditos, a biografia considerada a mais completa do artista catalão foi lançada em março deste ano. Escrita pelo jornalista Josep Massot, “El niño que hablaba con los árboles” (“O menino que falava com as árvores”, em espanhol) traz, pela primeira vez, o estudo da correspondência de Joan Miró, assim como o dos livros que ele possuía em sua biblioteca pessoal.
O artista é descrito como tendo uma personalidade bipolar, intercalando fases eufóricas e depressivas, entre otimismo na criatividade e melancolia sombria, além de manter uma rotina regrada com exercícios diários e alimentação saudável, pelo biógrafo, que o conheceu na adolescência, nos anos 1970, por ser amigo de seu neto David. A pressa, “como a do coelho branco, de “Alice no país das maravilhas” é outra característica citada por Massot.
____________
Serviço
JOAN MIRÓ. De João Cabral de Melo Neto. Organização: Valéria Lamego. Posfácio: Ricardo Souza de Carvalho. Editora Verso Brasil, 104 páginas. Preço médio: R$ 95.