
Em 4 de abril de 1968, o reverendo Martin Luther King, líder da luta pelos direitos civis nos EUA, foi morto por um tiro quando se encontrava na sacada do Hotel Lorraine, em Memphis, Tennessee. Estava próximo da famosa Rua Beale, berço dos blues americanos. Sua morte chocou o mundo. Os tempos eram libertários, utópicos. O sonho ainda não havia acabado. Mas a violência perpetrada pelos homens brancos racistas, incomodados pelos discursos de King, estava em pleno vigor. E não acabou até hoje num país cuja metade dos eleitores votou no reacionário rufião Donald Trump.
Para que esta morte não fosse esquecida, seis anos após a tragédia, o escritor James Baldwin (1924-1987), negro, homossexual e também defensor dos direitos civis, em seu quinto romance escreveria uma belíssima história de amor a qual intitularia de “Se a Rua Beale falasse”. Os melódicos sons dos blues interpretados e compostos por Ray Charles, Aretha Franklin, Billie Holiday, B.B. King e Marvin Gaye dão ritmo à narrativa, que não se passa em Memphis, mas, sim, em Nova York, mais precisamente nos bairros do Harlem e de Greenwich Village, na Bank Street.

A trama descreve a paixão da jovem Tish Rivers, de 19 anos, pelo escultor Fonny Hunt, de 22 anos, que se encontra preso injustamente por ter sido acusado por um policial branco boçal de ter estuprado uma porto-riquenha, Victoria Rogers. Narrada em primeira pessoa por Tish, a história é emocionante por várias razões, entre elas o fato de Tish descobrir que se encontrava grávida de seu amado logo após ele ter sido encarcerado. O bebê só irá fortalecer o vínculo entre os dois amantes, que eram chamados na adolescência pelos colégios de escola de Romeu e Julieta, apesar de na ocasião serem apenas amigos. Tish tem certeza, ou quer ter certeza, de que encontrará um jeito de tirar seu amor da prisão, enquanto o jovem escultor procurará, por sua vez, sobreviver psíquica e fisicamente dentro do brutal sistema carcerário americano, capaz de endurecer as almas as mais sensíveis.
Em 2018, quando foram relembrados os 50 anos da morte de Martin Luther King, a história dos dois jovens perversamente atingidos por preconceitos raciais foi levada para as telas pelo diretor Barry Jenkins, sendo estrelada por Kiki Lane no papel de Tish e Stephen James, no de Fonny. Tendo estreado nos Estados Unidos em dezembro do último ano, com ótima repercussão, e com estreia marcada no Brasil para 7 de fevereiro, o filme foi indicado a três categorias do Oscar: Regina King, que interpreta a mãe de Tish, foi indicada para melhor atriz coadjuvante; Barry Jenkins, para melhor roteiro adaptado, e Nicholas Britell para melhor trilha sonora. O diretor de “Se a Rua Beale falasse” já ganhou um Oscar com seu filme “Moonlight, sob a luz do olhar”, em 2017, quando derrotou o favorito “La La Land”.
Estupros, amor e morte
Apesar de usar uma voz feminina, o texto de James Baldwin é fortíssimo, espelhando muito ressentimento e raiva contra a sociedade americana branca racista, na qual o homem hegemônico tortura os negros humilhados e ofendidos como nos tempos da escravidão. Em outras palavras, são raros os momentos poéticos nos diálogos e nas descrições da narrativa de Tish, em que há muitos palavrões. Através da protagonista, de suas recordações até se deparar com o namorado e futuro marido atrás das grades, entramos em contato com uma realidade duríssima. Nas famílias, nas cidades, nas ruas e nos cárceres de uma democracia que falsamente se diz livre.
A moça, que trabalha numa loja como vendedora de perfumes, tenta com todas as forças manter a esperança viva, acreditando que o advogado de Fonny, indicado pela irmã Ernestine, será capaz de libertá-lo. A mãe dela, Sharon, que havia sido cantora e fora namorada de um baterista antes de se casar com o pai, Joseph Rivers, se esforçará em ajudar a filha indo até Porto Rico para se encontrar com Victoria, a mulher que acusara o escultor do ataque sexual. O incidente do falso depoimento da porto-riquenha acontecera porque um dia, fazendo compras de tomates na Bank Street, Tish fora assediada por um rapazinho ítalo-americano. Ele disse que a bunda da jovem parecia justamente um tomate e encostara a mão nela. Com raiva, a moça o empurrou. Depois, Fonny entra na mercearia e, ao saber do ocorrido, esmurra o delinquente.
Um policial ruivo de olhos azuis, Bell, daquele tipo que é o dono do quarteirão, vai tomar partido do rapaz agredido e quer prender Fonny. Mas a dona da mercearia, também italiana, não deixa, dizendo que vira a cena toda e que o jovem que desrespeitara Tish é que fora o responsável pela reação do artista, já que Fonny tivera toda a razão em defender a mulher. Bell promete se vingar e se vingará. Quando Victoria é estuprada no mesmo bairro da mercearia, ele a leva para a delegacia para apontar o estuprador e só coloca homens brancos na linha de reconhecimento, com a exceção de Fonny, o único negro do grupo. Como Victoria tinha sido violada por um negro, ela diz imediatamente que Fonny é quem a atacara. E com isso Fonny vai para a prisão, lugar de impiedosos estupros. Um amigo do escultor, Daniel, também preso injustamente – fora acusado de roubar um carro – havia sido violentado na prisão e, horrorizado, também vira um rapazinho ser atacado por vários detentos. Fonny não aceitará ser molestado sexualmente no cárcere e com isso irá para solitária. Mesmo assim aguenta o baque fortalecendo ainda mais sua alma.
Por ser artista, Fonny tem uma inteireza que não é aceita pelos brancos fascistas. Talvez ao descrevê-lo, James Baldwin estivesse descrevendo a si mesmo: “Frank (pai de Fonny) frequentava bares, mas Fonny não gostava de bares. Porque, veja bem, ele havia descoberto seu centro, seu próprio centro, dentro dele, e isso era visível. Ele não era o preto de ninguém. E isso é um crime na porra deste país livre. Supõe-se que você seja o preto de alguém. E se você não for o preto de alguém, então você é um preto mau, e foi isso que os policiais decidiram quando Fonny se mudou para downtown”. Essa mudança ocorreu porque Fonny decidiu que seu ateliê e sua moradia com a namorada ficariam em Greenwich Village, e não no Harlem, bairro da moradia dos pais de Tish e de seus pais. Área de artistas, o Village era muito perigoso para os negros, sobretudo no que diz respeito aos policiais brancos racistas com visão de mundo fascista. Baldwin, que foi abusado por dois guardas quando tinha 10 anos, odiava os Estados Unidos. Em 1948, quando estava com 24 anos, foi escrever seus livros em Paris. E morreria na França.
O racismo podia vigorar dentro das próprias famílias negras. As duas irmãs de Fonny, filhas de Frank e de Alice, uma religiosa fanática, tinham a pele mais clara, e por isso se envergonhavam da pele escura do irmão e de seus cabelos emaranhados. Para elas, no entanto, a condição do que chamamos de “mulatas” impedia o casamento. Os negros queriam namorar negras retintas como eles e os brancos as rejeitavam. Com isso, eram duas solteironas. Uma das cenas mais fortes do livro é a do anúncio da gravidez de Tish às irmãs e à mãe de Fonny, num momento em que o rapaz já se encontrava na prisão. Elas rejeitam o bebê, por terem consciência de que será totalmente negro, como Fonny e Tish. A mãe de Fonny chega a dizer que gostaria que o bebê secasse no útero da futura nora.
Em contrapartida ao ódio e aos doentios preconceitos, há sempre a descrição da paixão anímica de Fonny por Tish e vice-versa. É extremamente bela a primeira noite de amor, quando Fonny leva a namorada a seu pequeno quitinete no Village, onde se encontravam suas ferramentas, madeiras e pedras para fazer esculturas:
“Ele então me pegou pela mão e me levou para o colchão. Sentou-se ao meu lado e me puxou de modo que meu rosto ficasse bem debaixo dele, minha cabeça no seu colo. Senti nele algum pavor. Ele sabia que eu podia sentir seu pênis endurecendo e começando a se encher de fúria contra o tecido da calça e contra minha maça do rosto; ele queria que eu sentisse aquilo e, no entanto, estava com medo. Beijou todo o meu rosto, meu pescoço; descobriu meus seios e passou neles os dentes e a língua, enquanto suas mãos acariciavam todo o meu corpo. Eu sabia o que ele estava fazendo e não sabia. Eu estava em suas mãos e, quando ele falou meu nome, aquilo soou como um trovão junto ao meu ouvido. Eu estava em suas mãos: estava sendo modificada; tudo o que podia fazer era agarrar-me a ele. Só depois me dei conta de que também o beijava, que tudo se rompia, se transformava e rodopiava dentro de mim, me empurrando na direção dele. Se seus braços não estivessem me segurando, eu teria caído de costas, teria morrido (...) Ele abriu minhas pernas, ou eu as abri, e ele beijou a parte interna de minhas coxas. Tirou toda a minha roupa, cobriu meu corpo com beijos, e depois com a manta...”
Essa cena em que Tish se transforma em mulher é a mais longa do livro. Difícil imaginar que um homem a tenha imaginado, de tão real. Eis mais um trecho: “Em agonia me agarrei nele; não havia mais nada no mundo em que pudesse me agarrar; segurei-o pelo cabelo crespo. Não poderia dizer se era ele quem gemia ou se era eu. Doía, doía, não doía. Alguma coisa começou, desconhecida. Sua língua, seus dentes nos meus seios, doía. Queria tirá-lo de cima de mim, o agarrei com mais força, e ele ainda se mexia sem parar. Não sabia que havia tanto dele. Gritei e chorei com o rosto grudado em seu ombro. Ele parou um pouco. Pôs as duas mãos atrás dos meus quadris. Afastou-se, não tirou por completo, fiquei pendurada em nada por um momento, e então ele me puxou contra seu corpo, enterrou tudo com força, rompendo alguma coisa dentro de mim. Um berro se levantou dentro do meu peito, mas ele me cobriu os lábios com os seus, sufocando o grito com sua língua (...) Uma música nasceu dentro de mim e o corpo dele se tornou sagrado (...) Eu queria rir e chorar”.
A força vulcânica, telúrica, do amor fará com que Tish e Fonny vençam a batalha contra seus opositores, com o auxílio da família de Tish – mãe, pai e irmã – do pai de Fonny e do advogado branco, que segundo Frank Hunt, o pai marinheiro de Fonny, que trabalhava nos cais, ainda era generoso e dedicado à causa dos desvalidos porque precisava fazer dinheiro para viver. Quando ficasse rico, tinha certeza, o jovem advogado branquelo se esqueceria dos pobres. Há uma triste morte no final, que não vou contar, já que o livro merece ser lido, mas o importante é que o casal fica unido, com o amor vencendo os preconceitos, e o bebê vem à vida, chorando, chorando, chorando como se quisesse acordar os mortos.
*Jornalista e escritora