
Um romance de verdade é aquele no qual você entra e quer ficar, até a história acabar. Foi o que me aconteceu com "Judas", de Amós Oz. Comprei o livro para conhecer um pouco a obra do romancista israelense falecido em 28 de dezembro do ano passado. Pensei em adquirir "De amor e trevas", mas por ser um livro consagrado que já virou filme, resolvi deixar para depois e me aventurar em "Judas", publicado no Brasil pela Companhia das Letras em 2017. E logo nas primeiras palavras tive a forte sensação de que havia feito a aquisição certa, tendo pensado: "um romance, é um romance, é um romance", ou seja, o mais puro prazer intelectual.
Porque a trama agarrou-me de supetão, sendo instigadora e muito bem escrita desde o início: "Eis aí uma história dos dias de inverno no final de 1959 e no início de 1960. Nesta história há erro e desejo, há amor frustrado e certa questão religiosa que ficou aqui sem resposta. Em alguns prédios, ainda se reconhecem os sinais da guerra que há dez anos dividiu a cidade. Ao fundo dá para ouvir o toque distante de um acordeão ou os sons nostálgicos de uma gaita ao entardecer por trás de uma persiana cerrada. Em muitas residências de Jerusalém é possível ver na parede da sala de estar o redemoinho das estrelas de Van Gogh..."
Depois Oz nos oferece um resumo sobre a difícil situação na qual se encontrava o protagonista, o sonhador estudante Shmuel Ash. Sua namorada, a risonha Iardena, o havia trocado pelo primeiro namorado, um hidrologista "careta", chamado Nesher Sharshavsky, e o pior, havia se casado imediatamente com o especialista em águas, "que se lembrava até mesmo dos aniversários dos pais dela". A empresa do pai de Ash quebrara, e com isso ele ficara sem a ajuda mensal que o possibilitava fazer na universidade a pesquisa sobre como Jesus era visto pelos judeus. Teria que procurar emprego talvez fora de Jerusalém, onde havia mais opções. Mas estava sem forças. O coração estava em frangalhos. E ele era um homem frágil, um cachorrinho que podia se animar ao falar sobre política, mas que "no inverno se enfiava debaixo da cama com seu cobertor", como dizia a ex-namorada.
Uma das melhores coisas do livro são as descrições. Sobre Shmuel Ash, Oz afirma o seguinte: "Era um rapaz corpulento, barbado, 25 anos mais ou menos, tímido, sensível, socialista, asmático, com tendências a se entusiasmar facilmente e se decepcionar logo em seguida. Tinha ombros pesados, um pescoço curto e grosso, assim como a mão, e também os dedos: grossos e curtos como se em cada um deles faltasse uma falange. De cada poro do rosto e do pescoço de Shmuel Ash irrompia sem freio um fio de barba encaracolado que lembrava lã de aço. Essa barba se estendia e se juntava ao cabelo, que era todo cacheado, e com o emaranhado dos pelos do peito...Com grande facilidade seus olhos se enchiam de lágrimas e isso lhe causava constrangimento e até vergonha..."
Mas até agora, a história está longe de começar. Ela começa quando Ash vê um pequeno anúncio num bar oferecendo um quarto numa água-furtada para um estudante solteiro, que gostasse de ciências sociais e história, e que estivesse disposto a cuidar de um inválido. A entrevista poderia ocorrer de domingo a quinta-feira, na travessa do Rav Alvez, 17. O interessado deveria procurar por Atalia, mas tudo que fosse acordado entre eles deveria ser mantido em segredo. Atraído pela oferta e achando que não tinha nada a perder, Ash vai à casa do endereço, que era grandiosa mas bem sombria, conhece Atalia, cujo sobrenome era Abravanel, o professor de história Guershom Wald, que se locomovia com o auxílio de muletas, e em seguida passa a residir na mansarda do Rav Alvez, 17. Tendo levado para lá seus discos, a eletrola, alguns livros, poucas roupas e sua bombinha de asma. E aí, sim, teremos a trama.

Mesmo tendo uns 45 anos, Atalia era uma mulher bela e sensual. Por onde passava deixava um aroma de violetas. Cabelos negros fartos, corpo bem feito, marcado por roupas justas, lábio leporino, poucas palavras, o rapaz se sente imediatamente atraído, apesar da diferença de idade. De início Shmuel Ash não entende qual o parentesco que a ligava a Wald. Mulher, filha, governanta, inquilina, proprietária da casa? Aos poucos irá descobrir. Uma descoberta fará logo após a chegada à sorumbática residência, a de que Atalia era filha de Shaltiel Abravanel, nome que ele conhecia muito bem, por ser um membro de associações sionistas que se opusera à criação do Estado de Israel em 1948, e por isso fora considerado um traidor por Ben Gurion.
Atalia dá instruções detalhadas de como ele deveria agir na casa e cuidar do velho, que nos termos atuais não seria tão velho assim, pois teria cerca de 70 anos. Wald era um intelectual que gostava de discutir com amigos ao telefone e que terá longas conversas à tarde com Ash sobre Jesus, Judas, Abravanel e a criação do Estado de Israel. Se Atalia praticamente não falava nada de si mesma, mantendo a porta de seu quarto a maior parte do tempo fechada, aos poucos o rapaz vai descobrindo todo o passado e o presente da casa por meio do diálogo constante com Wald, em sua biblioteca, que na realidade fora do polêmico Shalatiel Abravanel.
Com sua timidez, constrangimento, sensibilidade e lágrimas, Ash vai conquistando a dura Atalia. E também conquista o velho Wald, que tinha prazer em discutir com ele o papel de Judas na história de Jesus e a visão que os judeus tinham sobre o Nazareno, às vezes muito debochada e sacrílega. De acordo com Ash, Judas era cristão, talvez o maior cristão de todos os homens da terra, e não um traidor. Já que acreditara em Jesus e em seus milagres. Perderá esta crença, porém, ao ver Jesus, como qualquer ser humano, gritar pela mãe e pelo pai ao enfrentar as dores da crucificação. Desesperado, Judas se matará na figueira que Jesus havia amaldiçoado por não dar frutos.

Se a história de Judas e o debate sobre sua traição são muito importantes na construção do romance, por se tratar do estudo de Shmuel Ash, o estudo que abandonara mas que retomaria, outro eixo narrativo, talvez mais importante ainda, é o da traição de Abravanel e da Guerra da Independência, em 1948, entre israelenses e árabes. Nesta guerra Atalia perderia o marido, filho de Wald, de forma atroz. O que a deixaria para sempre fechada para o amor, mas não para o sexo. Ou seja, tinha relações sexuais, mas sua alma era fiel ao marido morto tragicamente. Os homens eram capazes de realizar coisas horríveis, concluiu, por isso, amar um homem nunca mais. Nem mesmo um grande urso sensível como Ash.
O livro é uma tese pacifista. De certa forma, Amós Oz compartilha da posição de Abravanel de que o melhor, em 1948, teria sido não ter criado o Estado de Israel dentro da Palestina, mas ter optado por uma forma de convivência entre árabes e israelenses. Abravanel era contra estados e fronteiras. Acreditava num mundo pacífico. Sabia que a criação de Israel criaria um foco contínuo de guerras sangrentas, como realmente veio a acontecer. Mas o melhor é ler o livro. No qual vemos nascer um crescente carinho de Atalia por Ash, principalmente depois que ele sofre um acidente na escada na casa, carinho este que fará com que o estudante tome a decisão de que tinha que ir embora da água-furtada, já que sabia ser um carinho sem futuro.
Precisava construir um futuro para si próprio bem distante daquela casa com fantasmas e histórias trágicas. Entre elas a própria história de Israel. Ficara quatro meses praticamente enclausurado na mansarda. Sua dor do abandono por Irdana fora cicatrizada por Atalia. Era hora de partir e enfrentar o mundo lá fora. Deixar Jerusalém e suas lembranças. A vida o esperava
*Jornalista e escritora