Clara Passi, Jornal do Brasil
RIO - Se em 1917 a Revolução Russa, que reconfiguraria a geografia política mundial, veio em forma de foice e martelo, a transformação que inauguraria um novo capítulo na história da arte ocidental, naquele mesmo ano, teve o improvável formato de um urinol. O francês Marcel Duchamp (1887-1968) inscreveu o objeto batizado Fonte sob pseudônimo de R.Mutt no salão de arte Independents art exibition, em Nova York, o maior promovido nos EUA, sem jurados ou prêmios, que tinha entre os organizadores o próprio Duchamp.
O urinol foi terminantemente recusado: o artista submetera uma obra que não havia sido feita por suas mãos, não respondia a paradigmas elementares da arte feita para figurar em espaços expositivos, não seguia critérios de cor e forma ou visavam ao deleite visual.
Muito pelo contrário. Diante da negativa, uma revista distribuída no dia da abertura da exposição publicou um artigo anônimo intitulado O caso R. Mutt, que espraiava o raciocínio por trás de deslocar objetos de seus contextos cotidianos e elevá-los à categoria de arte, como reza a cartilha dos ready-made (pronto para o uso).
A bomba atômica estava lançada e o urinol comprado numa loja de departamentos da Quinta Avenida e outros ready-mades criados por ele desde 1913 fizeram Duchamp ser reverenciado como um dos artistas mais influentes do século 20. Prova disso é a primeira individual já montada na América Latina que o Museu de Arte Moderna de São Paulo, no Parque do Ibirapuera, abre hoje para convidados e amanhã para visitação.
Parceria com a Fundação Proa, de Buenos Aires, a exposição Marcel Duchamp: uma obra que não é uma obra de arte, comemora 60 anos do MAM-SP com 120 trabalhos do artista, vindos de acervos do Museu de Arte da Filadélfia. A curadoria é de Elena Filipovic, co-curadora da Bienal de Berlim.
Como apêndice da mostra, foi montada Duchamp-me, com obras de artistas brasileiros inspiradas no franco-americano. Em novembro, a exposição segue para Buenos Aires, sem escalas no Rio.
Pretendo visitá-la, mas considero lastimável que o Rio fique sem a mostra lamenta o artista plástico Cildo Meireles, um dos brasileiros mais bem cotados no exterior.
Quase tudo o que se vê é réplica, reprodução ou reconstrução, como O grande vidro, obra inédita no Brasil, cujo original não pôde ser deslocado da Filadélfia porque o vidro está quebrado e se desmancharia, e a imagem de Mona Lisa, obra-prima de Leonardo da Vinci, com irreverentes bigode e cavanhaque. Mas as cópias não são motivo para frustração, pois a reprodutibilidade e a ausência de autenticidade fazem parte do método do artista: todos os ready-mades originais se perderam quando Duchamp ainda era vivo e nos anos 50 e 60 o próprio assinou novas séries de Fonte, Porta-garrafas, Pente e Roda de bicicleta (1915-23), às quais pertencem as peças exibidas em São Paulo.
Crítico de arte e professor da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Guilherme Bueno sublinha o fato de as questões que Duchamp colocou terem sido incorporadas por artistas contemporâneos.
Quando o urinol irrompeu na década de 10, uma das dúvidas do público e do júri era se aquilo teria de ser lido como escultura. O que é obra de arte e o que é um objeto banal? comenta Bueno. Foi a partir dos ready-made que o artista se colocou não mais como o indivíduo que obrigatoriamente domina um virtuosismo técnico, a arte retoma questão artística mental, de arte como proposição, como pensamento.
Sem exagero, é de Duchamp a paternidade anárquica do que hoje chamamos de arte contemporânea, em que uma obra só estaria completa quando a ela se soma a interação do espectador. Adeus ao paradigma de fruição artística passiva, de pura contemplação. Bem-vindas as performances, instalações, as latas de sopa Campbell's e as Marilyn Monroes da pop art de Andy Warhol, a arte sensorial deLygia Clark e a conceitual de Cildo Meireles.
Duchamp influenciou toda a arte mundial. Sou sou um dos influenciados por ele. É um artista cardinal proclama Meireles.
Bueno lamenta tanto quanto Meireles o fato de o público carioca não receber uma exposição essencial para a formação de estudantes de arte e aproveita para jogar luz numa questão pujante e um tanto delicada para o mercado de arte contemporânea.
Duchamp se apropria da idéia de que é arte aquilo que o artista diz que é arte. Questiona-se qual é o lugar de um juízo de valor da obra de arte. Por que um crítico teria mais autoridade do que um artista para dizer que um urinol ou uma roda de bicicleta é arte? Quem determina que um objeto tem valor como arte e outro não tem quando os dois são idênticos? Duchamp questiona, enfim, o limite entre arte e vida.