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Sábado, 10 de maio de 2025

O baú pornô de Kafka

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Bolívar Torres, Jornal do Brasil

RIO - Quando se fala em Franz Kafka, o autor tcheco que se tornou símbolo da angústia moderna, logo vem à mente o sujeito pálido, melancólico, olhando tristemente para a câmera nas velhas fotos em preto-e-branco que lhe sobreviveram. Desde sua morte, em 1924, a posteridade tratou de moldar no imaginário coletivo as características básicas do mito kafkiano: solitário, atormentado, puritano e alheio à glória literária. Afinal, só um escritor com esse perfil poderia imaginar obras como A metamorfose e O processo. Disseminados durante décadas pelos estudiosos, os estereótipos, no entanto, estariam longe de corresponder à realidade. É ao menos o que tenta provar o livro Excavating Kafka, do professor, escritor e arqueólogo inglês James Hawes. Lançada este mês na Inglaterra, a obra vem causando polêmica por retratar um Kafka alegre, boêmio, extremamente sociável e, ainda por cima, consumidor de pornografia.

A mitologia romântica criou a idéia de que o grande artista sempre deve ser o desconhecido, o pobre, o infeliz, aquele que encontra inspiração apenas em seu coração, em oposição cultural ao seu tempo afirma Hawes, em entrevista ao Jornal do Brasil. O K-myth , como eu chamo a mitologia kafkiana, corresponde em cada detalhe a essas características. Mas não tem relação alguma com a verdadeira vida de Kafka.

Ex-professor de alemão na Universidade de Swansea e autor de cinco romances ainda não publicados no Brasil, Hawes estuda Kafka há mais de 10 anos. Durante esse tempo, juntou indícios suficientes para quebrar a imagem carregada por Kafka de Nostradamus solitário da Europa. Para começar, o autor tcheco não teria sido um frustrado funcionário público sem tempo para escrever.

Vivendo com os pais (uma família judia abastada), tinha um trabalho tranqüilo: o expediente durava não mais do que seis horas por dia, o que lhe deixava tempo de sobra para dedicar-se à literatura. Hawes também afirma que Kafka não era um escritor obscuro em seu tempo. Chegou a ganhar um prêmio literário antes de completar 30 anos, além de publicar alguns artigos no Diário de Praga, em 1918.

Outras mentiras, de acordo com Hawes, envolvem os problemas românticos de Kafka e à sua atitude, digamos, comportada em relação ao sexo. Longe do sacrossanto assexuado que alguns apresentam, teria sido um ávido freqüentador de bares e prostitutas em Praga. Aliás, o livro do professor britânico revela, pela primeira vez, um achado recente: o baú pornô de Kafka.

Trata-se de uma coleção de revistas eróticas das quais o autor era assinante. Descobertas pelo próprio Hawes entre a British Library de Londres e o Bodleian de Oxford, exibem desenhos explícitos de animais praticando felação, lésbicas trocando carícias e outras imagens proibidas para menores.

Quando comecei esse trabalho, não fazia idéia da existência dessas revistas ressalta Hawes. Mas o mais importante é que todos esses dados, as prostitutas, o êxito crítico contemporâneo e até mesmo a pornografia, já eram conhecidos pelos estudiosos. Só que ninguém falava disso com clareza.

Acusações de anti-semitismo

Para Hawes, a sacralização de Kafka foi construída progressivamente por diversos agentes, para quem o escritor deveria soar mais como um horrendo e enfastiante sub-Sartre , e não como o criador de comédias negras sobre a sociedade muito próximas dos contos de Dostoievski que sempre foi. Ironicamente, o autor acaba batendo forte no meio acadêmico, pelo qual sempre circulou, tanto como pesquisador quanto como escritor.

O primeiro a tentar construir essa falsa imagem de Kafka foi seu grande amigo e editor Max Brod denuncia. Mais tarde, foi a vez dos críticos alemães: depois da Segunda Guerra Mundial, era necessário descobrir um escritor de língua alemã livre de todas sombras da história moderna daquele país. Esses críticos não queriam saber que Kafka era filho de família rica, bem conhecido entre seus colegas artísticos e alto e leal funcionário do Estado Habsburgo até o fim! Afinal, quem se importava com isso?

Em sua profanação ao K-myth , Hawes chega a questionar a própria consciência judia do artista: Kafka, o visionário que, fechado em seu quarto, profetizou o Holocausto, seria um produto da cultura alemã, com a qual se fundia com perfeição. A idéia estraga a velha teoria fundada em torno da inadequação cultural, literária e social de Kafka, o que garantiu uma acusação de anti-semitismo. Acadêmicos alemães também atacaram Hawes, reclamando do sensacionalismo de sua tese.

Essa idiotice sobre anti-semitismo foi dita por apenas uma jornalista americana que vive em Berlim. O jornal alemão onde foi publicada essa mentira, Der Spiegel, chegou a se desculpar e mudar seu website. Quanto ao resto... Bom, como eu disse no livro, o retrato quase santo de Kafka é como um tesouro de igreja: proibido de tocar, é preciso crer!