ºC   ºC

ASSINE
search button

Quinta, 8 de maio de 2025

Uma mentira sufocada pela vergonha

Compartilhar

Carlos Helí de Almeida, JB Online

RIO - Andrzej Wajda tinha 13 anos quando a Segunda Guerra estourou. O diretor polonês, um dos nomes mais renomados do cinema político, passou grande parte da juventude esperando que o pai, um oficial do exército, surgisse entre os nomes dos soldados mortos em combate o que nunca aconteceu. A verdade só seria revelada muitos anos depois: o capitão Jakub Wajda fora uma das 15 mil pessoas, entre oficiais e intelectuais, assassinadas a sangue frio pela polícia secreta soviética em uma prisão na floresta de Katyn, na região ocidental da antiga União Soviética, em 1940.

Só quase 70 anos mais tarde, o autor de filmes que reviraram a história política de seu país, como O homem de mármore (1977) e O homem de ferro (1981), sentiu-se confortável para explorar um dos maiores massacres cometidos no século 20 e que ferira também a própria família. Katyn, que chega aos cinemas brasileiros em 10 de abril, depois de passar pelo Festival de Berlim de 2008 e concorrer ao Oscar de Filme Estrangeiro da temporada, reconstitui os momentos que levaram à execução sistemática de poloneses, fato negado pelos soviéticos até 1990, quando os primeiros documentos oficiais sobre o episódio vieram à tona.

A relação de amizade entre a União Soviética e Polônia, depois de 1945, foi construída tendo como base a mentira de Katyn. Os soviéticos queriam que nós, poloneses, acreditássemos que os alemães tinham matado os oficiais e intelectuais compatriotas. A mentira nos foi passada nas escolas, nos jornais, em todo o lugar, durante décadas ouvimos esta versão - conta o cineasta de 83 anos em entrevista ao Jornal do Brasil.

Seu pai estava entre os oficiais executados pelos soviéticos. Foi difícil falar sobre um assunto com o qual o senhor esteve emocionalmente envolvido?

Meu maior problema foi distinguir qual era o tema principal do filme. Eram os oficiais assassinados? Isso daria um bom filme político. Era minha mãe ou as mulheres polonesas que esperaram seus filhos e maridos voltarem da guerra? Isso daria um bom filme psicológico. E essa foi a mais difícil decisão que precisei tomar. Então, me dei conta de que esses dois elementos tinham que aparecer juntos porque, na tela, tínhamos que ver tanto os oficiais quanto as mulheres. E ambos foram enganados. Temos dois assuntos aqui: o crime em Katyn e a mentira de Katyn.

O propósito de 'Katyn' é reaquecer o debate sobre o episódio? Como os poloneses reagiram a ele?

Só o tempo dirá. Se meu filme causar algum impacto, espero que este seja uma sensação reparadora, de alívio porque, pela primeira vez, este crime e esta mentira foi mostrado na tela. O melhor remédio para problemas políticos e sociais é mostrá-los e falar abertamente sobre eles. Então, espero realmente que o filme traga algum alívio para o povo (polonês) porque finalmente mostramos a verdade de forma aberta.

O crime cometido pelos russos e ocultado pelos alemães não é mais segredo de estado. Qual a relevância em recriá-lo quase 70 anos depois do ocorrido?

Acho extremamente importante que um filme como este seja feito, porque há tópicos sobre o crime que não foram discutidos. Na verdade, foram mantidos longe da vista do público, são considerados tabus e, no entanto, ainda são muito perigosos. Além disso, um filme como este pode ajudar a melhorar as relações entre a Polônia e a Rússia. Acho importante inclusive que Katyn seja exibido na Rússia. O mesmo vale com relação à Alemanha.

Que memória o povo polonês tem do massacre hoje em dia?

Fatos históricos costumam ficar menos visíveis com o passar do tempo. Particularmente para as gerações mais novas, que lidam com problemas completamente diferentes, dentro de existências completamente distintas das da minha geração. Mas acho que é crucial que o cidadão conheça nossa própria História porque, de muitas formas, nosso passado tem muito a nos ensinar. Acho importante também que seja necessário mostrar aos jovens as preocupações que tínhamos no nosso tempo, o que sentíamos e o quão enorme eram nossas esperanças.

O massacre ainda é um tabu na Rússia?

Obviamente, há dois pontos de vista sobre este episódio histórico. Nem todos os russos acham que o assunto Katyn seja um tabu. Muitos amigos russos meus, que são artistas, compreendem o problema e concordam com o fato de que nós queremos mostrá-lo ao grande público como um dos maiores crimes ocorridos na Europa no século 20. Mas é verdade que há uma certa parte da população (russa) que ainda admira os feitos de Stalin e o poder que ele teve. E muitos outros que talvez tenham uma reação sentimental sobre o massacre.

'Katyn' foi lançado na Polônia em setembro de 2007, às vésperas das eleições gerais do país. O senhor não temeu que o filme fosse usado como instrumento político?

Sim, cheguei a temer que o filme se tornasse parte do debate político na época, mas consegui evitar que isso acontecesse. Não tirei fotos com políticos, não dei qualquer entrevista de fundo político. Não tomei parte das eleições gerais, tirando minhas obrigações como cidadão polonês, é claro. Não queria, de forma alguma que Katyn fosse usado como propaganda política. Quero que o filme seja uma despedida, ponha um ponto final neste tema. Não gostaria que virasse causa de algum problema político, de algum conflito internacional. Queria apenas encerrar o assunto. Apesar de ser um crime, não creio que a exposição do episódio em filme deva gerar consequências legais para as pessoas envolvidas. Não devo nada a ninguém, o filme não foi feito com dinheiro público e, portanto, não devo nada a nenhum

político.

O senhor foi um dos primeiros intelectuais a aderi ao movimento Solidariedade. Fez até um filme sobre a ascensão do partido, 'O homem de ferro' (1981). Por quê?

Entrar para o Solidariedade foi um dos momentos mais bonitos da minha vida. Juntei-me a ele porque foi o primeiro movimento que lutou pela liberdade na Polônia comunista, congregava forças de trabalhadores e de membros da intelligentsia do país, como escritores, políticos, médicos e cineastas. Nunca existiu nada igual antes do Solidariedade. Nunca ninguém havia conseguido unir operários e intelectuais em nome de uma mesma causa antes. Valeu a pena, sim. A liberdade pode criar outras dificuldades, como nos dar opções, escolhas, mas fazer escolhas é uma coisa boa. Quando pessoas são obrigadas a fazer escolhas de acordo com a vontade alheia, aí, sim, há algo errado ai.

O senhor costuma dizer que a fuga é um dos temas mais recorrentes em sua obra. Qual a razão para isso?

Sempre consigo fazer meus amigos rirem com a seguinte piada: é sempre bom fugir para a frente, do que fugir no sentido contrário, para trás, o que significaria retroceder. Quando se foge para a frente, para o futuro, podemos ter novas experiências. E este sim é um tópico muito presente em meus filmes mais políticos. Além disso, é importante ter na manga o elemento surpresa para o público.