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Coletânea reúne a mítica 'Desabrigo' e novelas de Antônio Fraga

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JB Online

RIO - Antônio Fraga volta mais uma vez. Desta, espera-se, para ficar. Um volume da coleção Sabor Literário, que a editora José Olympio está mandando para as livrarias, traz Desabrigo, a novela que tornou Fraga conhecido, quatro contos - um deles inédito, Crepuscular , que o caderno Ideias tem o prazer de apresentar em primeira mão (leia abaixo), e duas novelas, abrindo um ciclo fraguiano de publicações.

A organização é de Maria Célia Barbosa Reis da Silva, especialista em Fraga, que enriquece o livro trazendo informações sobre o percurso do escritor dito marginal, além de entrevistas feitas com ele.

Publicado pela primeira vez em 1945, Desabrigo gerou polêmica e foi reconhecido como obra-prima por Carlos Drummond de Andrade, João Antônio, Vinicius de Moraes, Oswald de Andrade. Na obra, Fraga trouxe inovações como o uso de gírias e a ausência de pontuação.

Crepuscular

Naquele entardecer, cá do alto do apartamento onde moro, vi as luzes do dia irem se apagando aos poucos na paisagem. Meu olhar percorreu os contornos da praia, demorou-se enamorado na contemplação do mar e deteve-se, por fim, no imponente cinza das montanhas que delimitavam ao longe a enseada.

Lá estavam elas, quando os homens da cultura letrada eram uma parte natural do quadro. Então, naus do Ocidente deitaram âncoras nas águas e os que desembarcam, após haver destruído as malocas dos nativos, ergueram no local suas moradas. Não obstante elas fossem bem sólidas, como todas as casas que pretendem durar, os descendentes dos marujos logo as substituíram pela maravilha dos sobradões coloniais. Constituiu tarefa das gerações posteriores demoli-las para que cedessem espaço a requintados palacetes, onde a aristocracia do café se ostentaria no luxo dos saraus. Sobre os alicerces desse fausto, os meus contemporâneos empilharam então os pavimentos dos atuais edifícios de concreto. Mas, no dia em que estes por seu turno aluíssem, cumprindo o fado das obras humanas, lá estariam ainda as montanhas testemunha de toda essa instabilidade.

Sim, ao vê-las da janela, eu não tive apenas consciência do pouco que representava a minha pobre época, em função do futuro, como se fez patente a meu espírito o fato de que todas as outras só tiveram um valor relativo e se encontraram sempre num perene estado de mudança.

Sem dúvida, essa alteração também se processava em mim, embora a sua marcha fosse gradativa e desse a ilusória sensação do estável. Eu retinha por certo na memória a imagem do velho palacete que o herdeiro de um barão arruinado convertera em cortiço. Lá dentro, num dos quartos, a revolta do garoto que via sua mãe a costurar até de madrugada, em troca de alguns níqueis era por certo a minha. Mas, se tudo se move e se transforma, teria eu outrora os mesmos sentimentos? Meninos cuidam de coisas pueris, ensinou o pueri puerilia tractant dos latinos. Caso a indignação fosse igual à de agora, eu seria uma criança sem infância, a sofrer com a iniquidade do sistema.

Ao observar de longe um prédio acabado, ignoramos de que maneira o construímos. Para saber, careceríamos de ter seguido a obra e ter visto como é que o pedreiro fez subir as paredes e os andares. Esse espetáculo mesmo, infelizmente, nada revelaria acerca dos fundamentos: daria apenas alguns dados para que instituíssemos sobre o fato uma hipótese verossímil. Pois bem, quando a gente se observa, na idade em que acredita que a análise do próprio ego é possível, somos esse prédio, cujas bases jazem ocultas, a fachada está pronta e os andaimes e escoras já foram retirados. O que verificamos é que um obreiro permanece, atarefado em reparar aqui e ali um ou outro estrago. Mas esse operário da conserva, seremos obrigados a admitir, talvez não seja mais aquele que labutou nos alicerces.

Não adianta - murmurei. Envelheci.

Concordo disse alguém atrás de mim. Voltei-me e deparei com minha esposa, a pouco mais de um passo. Ela sorria, divertida talvez por me surpreender monologando em voz alta. Depois, colocou-se na janela a meu lado e afagou-me a cabeça. Os teus cabelos estão ficando grisalhos.

Sim, estão. E as ideias também informei. Olha, essa enseada de Botafogo é mesmo muito linda. Pois em lugar de admirá-la, lá fui eu para o cenário interior. Vi então minha mãe a correr no trabalho, pedalando em sua máquina de costura, no vão intento de equilibrar com poucos ganhos, muitos gastos.

Freud diria que as mães são sempre heroínas, principalmente as dos letrados. Como escritor, porém, você sublima mal os seus complexos. Correr, pedalar, equilibrar... Se eu não conhecesse sua velha, veria ela em forma de ciclista.

Tem razão. A velha era...