Ricardo Schott, Jornal do Brasil
RIO DE JANEIRO - 'A cada dia, mês ou ano, torna-se menos importante saber quantos pregos foram necessários para se construir o palco e muito mais importante o que as pessoas gravaram em seu DNA sobre a palavra Woodstock', afirma o jornalista e DJ americano Pete Fornatale, autor do recém-lançado Woodstock, livro que documenta, com mais de 100 depoimentos, quase todos os lados possíveis do megafestival de música pop que fora lançado em agosto de 1969 como uma simples 'feira de arte e música', sem que seus organizadores tivessem a real dimensão do que aquilo iria se tornar.
Com a frase, o autor explica a pedreira que é contar as histórias de um evento cujo número de personagens é ilimitado existe gente, hoje sumida da música pop, que viveu intensamente o momento e cede depoimentos definitivos para o livro. E, mesmo num festival em que um jovem líder político como Abbie Hoffman (que, em depoimento à polícia, na época, afirmou morar 'na nação Woodstock') foi expulso do palco a guitarradas por Pete Townshend, do Who não dá para deixar a política e as questões sociais de lado. Elas surgem do que todos os entrevistados elegem como o último momento mágico da indústria do entretenimento, em que mesmo um megafestival ainda poderia carregar algum tipo de surpresa.
'Sem qualquer intenção prévia', escreve o jornalista, 'Woodstock se tornou um manifesto, um símbolo das mudanças que borbulharam na primeira metade e transbordaram durante a segunda metade dos anos 60 nos Estados Unidos'. Ele crê que o evento representou a entrega da tocha da geração que combateu na Segunda Guerra para os babyboomers, crianças nascidas entre 1940 e 1945. Para enxergar 'os três dias de música e paz' indo além dos dois elementos do slogan e ganhando contornos sociológicos, culturais e definitivos para se compreender a música pop, a indústria cultural, o cinema e até a política, Fornatale optou por um formato de livro-documentário, com narrações intercaladas pelas falas dos personagens.
Na verdade, estou pesquisando para este livro há... 40 anos - brinca Fornatale. - Comecei a coletar depoimentos naquela época mesmo e depois meu filho, que é meu editor, foi ajudando a formatá-lo. E concordo com essa imagem de livro-documentário. É como se eu apenas narrasse, e os personagens aparecessem como talking heads ao longo da leitura.
Estreando em 1969 na rádio WNEW-FM, de Nova York, Fornatale foi o responsável por ler um comercial mínimo sobre uma tal 'exposição aquariana de arte e música em White Lake, na cidade de Bethel, Condado de Sullivan, em Nova York', sem saber no que aquilo iria dar. Ninguém sabia. Os engarrafamentos, a lama, a falta de estrutura que era contornada com a inacreditável boa vontade dos presentes, a comunicação apaixonada de Chip Monck ('a voz de Woodstock') e os problemas que só os das internas sabiam eram partilhados por público e plateia só foram prenunciados quando os organizadores enxergaram 100 mil pessoas entrando nas terras do fazendeiro Max Yasgur, que as alugara para o festival. E os enormes congestionamentos nas estradas que levariam até lá.
A partir daí, Fornatale passou a documentar tudo. Para chegar a dados sociológicos, recorre a depoimentos de psicoterapeutas como Rollo May, e a antropóloga Margareth Mead (que diz ter sido o festival a confirmação da identidade daquela juventude).
Ninguém sabia exatamente o que seria aquilo até ver o número de pessoas chegando ao festival continua Fornatale, sem esconder o susto. E elas continuavam chegando. Para você ter uma ideia, a cifra mais comum a que as pessoas se referem é cerca de 450 mil pessoas no final daquele dia.
Mesmo com todo o verniz sociológico e político, Woodstock, na essência, é um livro de música. Um livro que serve de guia para quem viu o filme. Ou mesmo para quem, 40 anos depois, quer reinvindicar sua cidadania na nação Woodstock e entender direito o que representa cada um dos personagens que aparecem no documentário sobre o festival que Michael Wadleigh lançou em 1970, com um então desconhecido Martin Scorcese como assistente de direção.
O trabalho de Fornatale mostra com precisão o fato de um festival tão mágico não ter sido feito sob condições tão tranquilas assim, e expõe em detalhes os momentos de tensão e de amadorismo que já haviam sido captados por Wadleigh. Entre eles estão os riscos de morte devido à chuva no meio do evento (que poderia ter causado choques).
Até o folksinger Richie Havens, às cinco da tarde do dia 15 de agosto de 1969, fazer soar, acompanhado de violões e percussão, os primeiros acordes da intensa High flying bird, não se sabia quem abriria o festival. Havens tocou por duas horas ele havia sido escolhido por usar apenas instrumentos acústicos, que facilitariam o início das apresentações.
A ingenuidade daqueles dias 15, 16 e 17 de agosto de 1969, por sinal, são as grandes atrações de Woodstock, o livro. O idealizador Michael Lang, que recentemente publicou seu próprio relato The road to Woodstock (ainda sem tradução no Brasil), é flagrado recusando-se a colocar um banner com o nome do festival no palco, para que o público focasse a atenção nos artistas. Estrelinhas pop em ascensão, como Melanie, chegaram a paralisar quando viram a multidão que as aguardava. O público, por sua vez, surpreendeu: não se sabe de atos de violência.
Fico triste por essa ingenuidade ter se perdido com o tempo. Mas até aquela época, os promotores de eventos e gravadoras não faziam a mínima ideia de quão larga a plateia jovem é. Só que, depois do festival, passaram a saber muito bem disso. Por isso que nunca haverá outro Woodstock acredita Fornatale.
Acompanhando o livro, percebe-se links entre os shows dos artistas escalados e a explicação para cada um deles ter aparecido num determinado horário e pode-se pôr o que é visto no filme em ordem verdadeira e lógica. Apesar de só aparecer pela metade do longa de Wadleigh, Country Joe McDonald seria o terceiro artista a dar as caras no palco, sem estar acompanhado de sua banda, The Fish. E seria responsável por um dos momentos mais marcantes: após fazer o público gritar por três vezes a palava fuck, encaixou a canção acústica I-feel-like-I'm-fixin'-to-die rag, uma das músicas mais diretas do período sobre a Guerra do Vietnã, com versos como 'Seja o primeiro do quarteirão a receber seu filho de volta num caixão'.
Woodstock teve a participação de artistas que nem mesmo na época representavam grande coisa, como o cantor Bert Sommers (imposto por um dos produtores) e o Sweetwater, que abriria o festival mas ficou preso num engarrafamento. Correndo por fora como moeda de troca para que o festival tivesse a sensação psicodélica estava o Grateful Dead. Santana era um ilustre desconhecido ao subir ao palco em Bethel. Mas é lamentável que nomes como Arlo Guthrie, dono de um respeitável repertório, que inclui o épico (e hit entre 1969 e 1970) Alice's restaurant, tenham ficado na penumbra.
O fato de verdadeiros heróis do evento como o Jefferson Starship (ex-Jefferson Airplane), o Ten Years After (sem o líder, o guitarrista extraordinário Alvin Lee) e o próprio Country Joe, não por acaso atrações da tour Heroes of Woodstock que começa nesta sexta e se estende pelo mês de agosto estarem hoje desaparecidos da mídia não chega a deixar Fornatale aborrecido.
Olha, todos esses artistas são grandes amigos meus. E sei que, ainda que o tempo tenha acabado para eles, todos estarão ainda se apresentando ao vivo e vivendo o tipo de vida que imaginaram para eles relata. É como me disseram uma vez: 'Encontre um trabalho que você ame e você nunca mais terá de trabalhar pelo resto da sua vida'.