Affonso Celso Thomaz Pereira*, Jornal do Brasil
RIO DE JANEIRO - Diz um funcionário do governo em relatório enviado a um tribunal local: 'Não sei dar-vos sequer uma idéia de quanto seria prejudicial aos interesses da administração entregar seus empreiteiros ao julgamento dos tribunais comuns, cujos princípios não podem jamais conciliar-se com os dela'. Trata-se do século 18, nosso vizinho.
A atualidade da obra de Alexis de Tocqueville, escrita em 1856, vai além da semelhança com nossos noticiários. O Antigo Regime e a Revolução, reeditado recentemente pela Martins Fontes a primeira edição brasileira pela UnB é de 1979 - é um clássico obrigatório para todo interessado em história e política, devido à contribuição para o desenvolvimento da teoria e da metodologia nestes campos e à arguta reflexão sobre a formação do mundo contemporâneo.
O jurista e político francês quer explicar por que a revolução, que se preparava em toda Europa, ocorreu na França; de que maneira ela surge da sociedade que iria destruir; e como a monarquia sucumbe completa e subitamente ao movimento. Neste sentido, a chave para a compreensão da Revolução, segundo o autor de Democracia na América, está no processo de centralização do poder. De acordo com sua tese, o trabalho concluído e ampliado pela revolução já vinha sendo preparado há três séculos pelos príncipes de França, na medida em que esvaziavam o poder da nobreza, antigo sustento político do reino, e ampliavam o corpo de funcionários administrativos, legislativos, judiciários e fiscais sob comando direto do rei.
Desenvolveu-se assim um 'poder central imenso que atraiu e engoliu', não sem disputa (lembremos a Fronda), os poderes dispersos numa sociedade ainda ofuscada pelo brilho remanescente da fidalguia. As mãos dos burocratas já se faziam sentir no cotidiano de todo o reino. O rebaixamento do papel da nobreza, segundo o autor, tornava seus privilégios mais odiosos aos olhos da burguesia e do camponês. Seus deveres, funções e obrigações, estabelecidos a partir da Idade Média, que significavam alguma segurança para os plebeus e representavam sua funcionalidade social, extinguiam-se. Restavam seus direitos pecuniários.
Tocqueville nos apresenta uma história das ideias políticas, dos costumes e das instituições, na qual o ressalte da ação política e econômica da nobreza entre os séculos 13 e 17; o elogio às liberdades urbanas na Idade Média; e o papel central desempenhado pelo clero espalhado por todos os setores da vida social francesa são elementos centrais mobilizados no sentido de compreensão da sociedade que preparou a revolução.
A polêmica maior fica por conta da discussão sobre os limites da Revolução. Lemos já no prefácio que após 1789 'um governo mais forte e mais absoluto do aquele que a Revolução derrubara retoma e concentra então todos os poderes, suprime todas as liberdades que custaram tão caro, coloca no lugar delas vãs imagens; chamando de soberania do povo os sufrágios de eleitores que não podem esclarecer-se nem se concertar, nem escolher'. (Note-se que em 1989 a discussão encontra-se ainda indecidida, os historiadores François Furet e François Dosse representam as partes do debate sobre as considerações teóricas do alcance da Revolução.)
A pena de Tocqueville volta-se contra o sistema representativo burguês vigente, que entronizou esta classe como nova casta política. O projeto vitorioso defendido pela fisiocracia enxergava nas liberdades políticas entraves para o desenvolvimento econômico do país e criava assim uma tirania mais lógica e mais uniforme que a antiga, regida pela economia, nivelando os homens numa massa homogênea mais fácil de dominar.
No plano das ideias, a Revolução surge como um desenrolar das contradições do Antigo Regime. Encarado como moral, o poder do rei foi aos poucos sendo minado, mesmo a censura não pôde evitar seu ocaso. Os filósofos iluministas tomaram de assalto a esfera pública, forçando-lhe a entrada por meio da palavra nos salões literários ao criar projetos políticos de uma nova sociedade e propor a destruição do edifício do presente. Antecipando em 100 anos a fundamental tese do historiador alemão Reinhart Koselleck em Crítica e crise, Tocqueville verifica que no iluminismo 'cada paixão pública disfarçou-se como filosofia'. A natureza humana e a moral politizaram-se. A Revolução tornava-se uma exigência não só dos franceses, mas da humanidade.
Como clássico, a obra supera seu tempo. L'ancien Régime é sobretudo uma reflexão profunda acerca da modernidade. Há aqui poderosos argumentos que discutem o papel nivelador da igualdade nas sociedades de massa, o uso do poder nas sociedades capitalistas e a repressão da liberdade política nas democracias representativas. A atualidade da obra reside na urgente reflexão que ela encaminha para a compreensão das sociedades contemporâneas e segue até o totalitarismo de mercado.
Encerramos esta resenha com uma passagem que bem poderia ocupar as atuais manchetes dos jornais e que incita a um pensamento mais demorado sobre o atual papel do público na política nacional; nela, Tocqueville, com delicada ironia, lamenta que 'uma nação fatigada de longos debates concorda facilmente em ser enganada, contanto que a deixem repousar; e a história ensina que então para contentá-la basta coletar por todo país um certo número de homens obscuros ou dependentes e fazê-los desempenhar diante dela o papel de uma assembléia política, mediante salário'.
* Mestre em história pela PUC-Rio e professor do IFRJ