Luiz Felipe Reis, Jornal do Brasil
RIO DE JANEIRO - Desde que, em 2006, a diretora e fundadora da Cia. Amok Teatro, Ana Teixeira assumiu a curadoria do Encontro Mundial das Artes Cênicas naquele ano sob o tema O teatro em tempos de guerra uma série inquietações a fez repensar os rumos da sua pesquisa teatral e o repertório do seu grupo. Ao conviver e lidar com as experiências vividas por professores, pesquisadores e diretores de companhias sediadas em países como Afeganistão, Iraque, Sérvia, entre outras zonas de conflito mundial, ela traçou, junto ao sócio e diretor francês Stéphane Brodt, uma trilogia sobre o assunto: guerra.
Após abordar o conflito no Oriente Médio, entre israelenses e palestinos, em O dragão (2008), agora cabe a Brodt a direção da segunda parte da sequência, Kabul, montagem que assume o Espaço Sesc, a partir desta quinta-feira, para tratar de intolerância e fundamentalismo religioso, com atenção especial na posição da mulher em meio aos conflitos armados no Afeganistão.
Tudo começou com a mostra, que, além dos representantes internacionais, reunia grupos de teatro brasileiros, de muitas favelas, como o Nós do Morro, por exemplo, que desenvolviam seus trabalhos em áreas de conflitos conta Brodt. A partir dali, decidimos trabalhar sobre o tema guerra. Pesquisamos desde a Primeira Guerra Mundial, o Vietnã, até chegarmos na batalha entre palestinos e judeus, que se desenrola até hoje.
Marcada pela relação entre as batalhas e as mulheres, a montagem parte de um episódio real, ocorrido em novembro de 1999, quando uma imagem, capturada por uma câmera amadora, transmitiu ao mundo todo a cena em que uma mulher, coberta por uma burca azul, era apedrejada e executada em pleno estádio de Cabul.
Esta imagem é o exemplo mais bárbaro e cruel da aplicação de uma doutrina radical como a dos talibãs. O vídeo correu o mundo, foi algo emblemático lembra. Nosso trabalho investiga o sofrimento feminino, das mães e das mulheres em meio a todos esses conflitos armados. É uma questão central, porque elas são praticamente escravizadas. Não têm direito a médicos, trabalho, educação...
Outra fonte de pesquisa e inspiração que possibilitou ao diretor contextualizar e entender melhor os mecanismos políticos que regiam o povo afegão à época em que estavam sob o domínio talibã foi o livro As andorinhas de Cabul, do escritor argelino Yasmina Kadra. Tanto a imagem capturada pelo celular e o livro, quanto pesquisas na internet, o fizeram perceber que, em se tratando de guerras, a dor, o sofrimento, perdas e medos têm o poder de conectar povos e culturas distantes.
Nosso desejo era justamente o de ir além da imagem e dos fatos. Investigar que ser humano era aquele por debaixo da burca explica o diretor.
Conhecer quem era aquela mulher foi uma forma possível e direta de compartilhar sentimentos que não se encontram nos dados. Buscamos a história e construímos uma ficção do que pode ter sido a sua vida até a sua execução.
Kabul apresenta a guerra através de quatro personagens, que refletem uma nação traumatizada por décadas de conflitos e pelo julgo dos talibãs. Madji, um comerciante que perdeu sua posição social, Zunaira, proibida de exercer sua profissão, Tariq, um moudjahid mutilado que se tornou carcereiro, e sua esposa Maryam, vítima de uma doença incurável.
Mostramos um povo oprimido, que não pode sorrir, cantar ou tocar música nas ruas diz o diretor. O mais interessante é notar que a dor liga e acaba com as distâncias. Os discursos são comuns a todos os conflitos. No caso das mulheres, são os mesmos na Plaza de Mayo, como no Irã, e no Afeganistão. Elas não querem mais entregar seus filhos.
Mais do que encenar guerra entre países, o diretor se interessa em representar conflitos através de povos que disputam e convivem na mesma terra. Caso de grupos étnicos e religiosos afegãos e dos conflitos civis em Moçambique, próxima e última parte da trilogia.
São batalhas que vão além das fronteiras. Observamos o embate entre pessoas de uma mesmo território.
E também de mesma religião. Em Kabul, um grupo minoritário, formado por talibãs, oprime uma maioria também islâmica, mas não radical.
É a diferença de um islamismo fundamentalista e uma interpretação mais moderada. Não fazemos uma crítica ao islamismo, e sim à intolerância religiosa, à crueldade e à violência.