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Sábado, 10 de maio de 2025

'Uma odisseia nos trópicos' encerra a biografia de Euclides da Cunha

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Paulo Roberto Pereira, Jornal do Brasil

RIO - Espera, cachorro! . Assim se inicia o primeiro esboço biográfico de Euclides da Cunha, publicado no Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, de 22 de agosto de 1909, pelo jornalista português João Luso, que reproduzia as palavras de Dilermando de Assis ao tentar alcançar Euclides, que se retirava da casa do amante da sua mulher depois do tiroteio ocorrido lá dentro. Escrito uma semana depois do encontro trágico, no bairro da Piedade, entre Euclides e os cadetes Dinorah e Dilermando, que culminou no extermínio do autor de Os sertões, o texto de João Luso é um depoimento emocionado sobre o caráter íntegro do escritor, buscando o jornalista uma explicação para o epílogo trágico de uma vida exemplar que se findara aos 43 anos.

Na primeira biografia propriamente dita, A vida dramática de Euclydes da Cunha (José Olympio , 1938), Eloy Pontes sinaliza para o leitor como pretendia tratar a trajetória do escritor, lembrando que o exame de sua conduta, porém, constitui apelo a quantos ainda acreditam nos ideais sem nódoas É sob esse postulado que o biógrafo nos conta a trajetória do engenheiro-escritor. Primeiro o Euclides no Vale do Paraíba, no ambiente idílico de sua infância, depois o estudante na Escola Militar da Praia Vermelha, com o gesto rebelde do jovem republicano de atirar aos pés do ministro da Guerra a baioneta. Mais adiante o correspondente do jornal O Estado de S. Paulo na Guerra de Canudos, a escrita de Os sertões e o sucesso estrondoso do livro. Por fim, a morte no jardim de uma casa de subúrbio. O livro de Eloy Pontes, pelo seu pioneirismo, pagou o preço de estar defasado em alguns momentos, mas não se lhe pode negar a contribuição inestimável pelos dados biográficos a que teve acesso na época.

A segunda biografia, Euclides da Cunha (Casa do Estudante do Brasil, 1948), apareceu pela mão de Sylvio Rabello, fundamentada em seguro enfoque biográfico e interpretativo a revelar aspectos obscuros da trajetória do autor de Contrastes e confrontos pelo viés psicanalítico, com ênfase na sexualidade. É um relato baseado em vasta pesquisa e em precioso material cedido por euclidianistas. Além disso, Sylvio Rabello tinha diante de si um texto excepcional para se espelhar, o Perfil de Euclides, de Gilberto Freyre, publicado em 1944, que, como biografia intelectual, ficou solitário até o aparecimento do trabalho singular de Olímpio de Souza Andrade, História e interpretação de Os sertões, surgido em 1960. Esta obra é a primeira parte da biografia de Euclides idealizada por Olímpio que, apanhado de surpresa pela morte, não concluiu o seu projeto. O livro de Sylvio não está isento de enganos, como o seu comentário à Última visita , publicado por Euclides no Jornal do Commercio, de 30 de setembro de 1908, sobre a morte de Machado de Assis, em que diz, equivocadamente, que não foi um trabalho que honrasse o autor .

Não foram poucas as biografias de Euclides da Cunha surgidas até 2009. Contudo, a maioria talvez não tenha dado a relevância devida a um aspecto central no itinerário do escritor: a ligação umbilical entre a sua vida e a sua obra. Não é de hoje que estudiosos destacam a aproximação entre o perfil de Antônio Conselheiro, traçado em Os sertões, com a vida do próprio Euclides: homem sonhador, abatido pela tragédia da infidelidade da mulher. Em O Marechal de Ferro , o retrato psicológico de Floriano Peixoto delineado por Euclides tem afinidade com revelações íntimas encontradas na correspondência do escritor, ao se desnudar para os amigos.

O aparecimento de uma biografia de Euclides que possuísse o equilíbrio entre a personalidade do biografado e a sua trajetória pública era um sonho acalentado pelos euclidianistas. A obra que cumpriu em parte essa aspiração foi o Retrato interrompido da vida de Euclides da Cunha (Companhia das Letras, 2003), de Roberto Ventura. Organizada pelo gesto benemérito de Mario Cesar Carvalho e de José Carlos Barreto de Santana é, infelizmente, uma obra fragmentada, com interrupções e repetições em diversas partes. Contudo, mesmo com esses senões, contém o fermento da grande obra biográfica: contextualiza a narração, descreve os eventos com emoção e nos capítulos já concluídos, antes da morte trágica de Roberto, deparamo-nos com um texto leve, bem escrito, cheio de sugestões sobre a complexa personalidade de Euclides da Cunha. É que Roberto Ventura conhecia, como poucos, a vida e a obra de Euclides. Tal conhecimento, aliado a uma sensível interpretação histórico-literária, permitiu que revelasse novas sendas sobre o universo euclidiano que tantos estudiosos antes dele não conseguiram perceber.

O aparecimento deste Euclides da Cunha: uma odisseia nos trópicos, de Frederic Amory, provavelmente encerrou a longa e tão ansiada espera pela biografia definitiva do autor de Os sertões. Esse brasilianista, que teve um longo caso de amor com a pátria de Euclides, sucumbiu também à morte antes de ver o seu livro publicado.

Lembra Leopoldo Bernucci, na apresentação da obra de Frederic Amory, a abrangência e, ao mesmo tempo, a capacidade de síntese e o rigor que conseguiu o biógrafo norte-americano ao confrontar os dados e as fontes manuseadas. Não há dúvida de que Amory, talvez por ser o último dos beneméritos a se debruçar sobre o universo euclidiano, teve o privilégio de examinar praticamente todos os documentos essenciais para, a partir deles, escrever a sua versão exemplar da história de um explicador do Brasil, cuja vida tem sido motivo de apaixonadas versões. Contudo, ser conhecedor da trajetória pessoal e intelectual de Euclides não garante a qualidade que possui Euclides da Cunha: uma odisseia nos trópicos: um texto que une a biografia intelectual, com análises muito bem fundamentadas sobre os textos do escritor, com o itinerário pessoal, muitas vezes doloroso, do homem de princípios rígidos, temperamento explosivo que, desde a mais remota infância, foi um solitário vagando de lar em lar. Amory mostra como Euclides não se desvencilhou das tramas tecidas pelo destino que estendeu seu nomadismo entre o vale, o sertão, a selva e a cidade cortando-lhe o fio da vida em um local cujos nomes Santa Cruz e Piedade simbolizaram o itinerário do seu sacrifício.

O homem múltiplo Euclides da Cunha militar, jornalista, engenheiro, escritor, militante político, explorador da Amazônia foi visto por seu biógrafo Frederic Amory sob diversos enfoques que enfatizaram a evolução do seu pensamento. Ao tratar de temas espinhosos, como o pretenso racismo de Euclides, demonstra Amory, seguindo as pegadas de Guilhermino César, que Euclides, descendente do cruzamento de um traficante português de escravos com uma baiana de origem indígena, expressava na verdade o seu próprio tumulto interior ante a questão, candente na sua época, da pureza de raça. Essa é uma das grandes contribuições dessa biografia que acaba de vez com certas leituras superficiais que apontam um Euclides excessivamente atrelado ao pensamento positivista de Augusto Comte. Amory, na sua minuciosa pesquisa, revela muito além do que já fizera Clovis Moura a respeito das ideias de Euclides e do seu conhecimento filosófico, mostrando o papel vital que teve sobre os seus trabalhos literários a sua adesão ao pensamento de Herbert Spencer e à teoria da evolução de Darwin, as suas relações com as correntes políticas do seu tempo, como o socialismo proudhoniano e o sindicalismo italiano, além da sua pretensa aceitação às ideias marxistas veiculadas no ensaio Um velho problema .

O que impressiona em Euclides da Cunha: uma odisseia nos trópicos é, por um lado, a vasta documentação manuseada e, por outro, o livro conter apenas algumas poucas incorreções, facilmente sanáveis em uma segunda edição. O único reparo que de fato se pode fazer nessa obra admirável é se desconhecer o motivo por que Frederic Amory, ao comentar as reportagens e telegramas enviados por Euclides da zona de guerra no sertão baiano, não utilizou as duas edições básicas já publicadas: Canudos: diário de uma expedição, organizado em 1939 por Antônio Simões dos Reis, com introdução de Gilberto Freyre, e Diário de uma expedição, organizado em 2000 por Walnice Nogueira Galvão. Se Amory, leitor sensível, não viu no Diário de uma expedição os atributos artísticos do estilo euclidiano, soube vê-los muito bem em Os sertões a que designou como o livro que durará enquanto o português for uma língua viva .

Assim, Frederic Amory nos oferece um retrato de corpo inteiro do itinerário doloroso de Euclides da Cunha, um homem tímido, de caráter firme, que tinha a personalidade dividida entre os compromissos intelectuais com a sua pátria e a infelicidade da sua vida conjugal.