Victor Hugo é, sem sombra de dúvida, um dos mais relevantes nomes da história da literatura com uma obra que contempla a palavra em prosa, verso e escrita dramatúrgica, em seus mais de setenta títulos publicados (obras póstumas incluídas). A obra de Hugo – poesia à parte – parece percorrer dois caminhos que levam a uma mesma praça: a da denúncia do peso que tem os pés da aristocracia e da monarquia sobre o povo.
Os caminhos se pareiam, ainda, em outro aspecto: o tratado estético que serve como âncora dos trabalhos do autor e que ditarão as regras do que, depois, vimos se concretizar como “drama moderno”.
As premissas reclamadas para essa (pretendida) nova forma de se escrever, estão defendidas no prefácio de Cromwell – drama histórico, de 1827 –, onde Hugo, além de chamar seus pares à liberação das restrições impostas pelas tradições classicistas em defesa de uma verdadeira reflexão da natureza humana em sua totalidade, defende a coexistência do sublime e do grotesco nas obras de doravante.
O modelo foi experimentado em obras de retumbante sucesso que fizeram saltar para o imaginário popular personagens como o sineiro Quasimodo, em romance de 1831, e, mais tarde, em 1869, o ator saltimbanco Gwynplaine, protagonista do romance O homem que ri que, agora, pelas mãos do diretor francês Jean-Pierre Améris, chega às telas em sua terceira adaptação para o cinema, trazendo Marc-André Grondin no papel-título.
Este tal homem fica famoso pela máscara grotesca na qual se transformou seu rosto; quando criança Gwynplaine – filho de um nobre que teria traído o Rei – foi sequestrado e vendido a um grupo de ciganos andarilhos apelidados, não sem motivos, de “Comprachicos”, conhecidos por submeter crianças a seções cirúrgicas que os desfiguravam transformando-os em fontes de renda, como atrações grotescas. Devido a um decreto que bania essa gente da Inglaterra, a tribo zarpa de navio deixando pra trás o pequeno Gwynplaine que ainda encontra ânimo para salvar uma criança que minguava nos braços da mãe morta.
Em pleno inverno, eles são acolhidos por Ursus e passam a viver com ele. Aqui, sabemos que a menina, que se chamará Déa, está cega e que o rosto de Gwynplaine é marcado por uma profunda cicatriz que denota um constante sorriso. Usando desses aspectos, os três resolvem criar um espetáculo teatral para ganharem o dinheiro suficiente para sobrevida que levam na carroça onde moram e trabalham. Os comentários sobre o “homem que ri” logo chega à corte que tem particular interesse nesse personagem, conduzindo a história para o seu final de contornos trágicos.
Para o cinema, que já mostrou Nosferatu (F. W. Murnau, 1922), Frankenstein (James Wale, 1931) e o próprio Corcunda de Notre Dame (William Dieterle, 1939), entre tantos outros, o grotesco não é nenhuma novidade. Quando Paul Leni, em 1928, levou à tela a história de Gwynplaine, pela primeira vez, se apropriou das técnicas do cinema expressionista para causar no espectador o impacto da obra literária obtendo como resultado um filme que, não raramente, é encontrado entre os títulos de “terror”.
O esforço de Jean-Pierre Améris na condução da atual versão parece ser o de revelar o aspecto humano dos personagens, sublinhando as afetividades e as afetações o que poderia nos oferecer criações antológicas, legando ao filme um lugar mais presente na memória, o que não se concretiza.
Gérard Depardieu, o nome de maior peso do elenco, surge em cena como Ursus, um homem que é a síntese da ideia do duplo: um bruto que nunca chorou versus um homem sensível capaz de se comover e mudar de vida por causa de duas crianças. E esgota-se aí o que poderia vir de potente enquanto criação atorial, essa mesma nem tão inspirada assim.
Não serão poucos os que se lembrarão da estética desenvolvida por Tim Burton, no desenho dos personagens que cria com seus elencos ao longo da carreira, em especial aquele tal esquisitão com as mãos-de-tesoura; assim como alguns movimentos de câmera e posicionamento de elenco e figuração (e a bela trilha), trarão a memória cenas inteiras de Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas (Burton, 2004); a chancela de homenagem pode cair bem, afinal, Burton é, certamente, inspirador de muitos dos traços negros do que se vê em cena, hoje, no cinema do mundo.
O que se entende, contudo, como estética fílmica (locações, iluminação, fotografia, figurinos, etc), esta é absolutamente autônoma de qualquer citação, a não ser, claro, as que vêm afixadas a um filme de época. É bonito, enche os a tela e os olhos.
O homem que ri é um dos filmes que compõem a programação do Festival Varilux de Cinema Francês (de 3 a 10 de maio) e merece ser visto, despretensiosamente.
Cotação: ** (Bom)