O ano era 1968. Faltavam noves meses para os militares decretarem o AI-5, que atirou o país nas trevas ao longo de décadas. Oito meses depois da passeata contra as guitarras, realizada em São Paulo, vestindo roupas coloridas, alegres, bem-humorados e conscientes da revolução musical que viriam a promover, os paulistanos Arnaldo Dias Baptista (19 anos), Rita Lee (20 anos) e Sérgio Dias Baptista (18 anos) tramavam com o maestro, compositor e grande feiticeiro da Tropicália, Rogério Duprat, o primeiro álbum de Os Mutantes, que está fazendo 50 anos.
Os três se juntaram a Duprat e ao produtor Manoel Barenbein para gravar um marco, um ícone, um disco que iria chacoalhar os ouvidos a as cabeças do Brasil e do mundo. Até hoje. Considerado genial (e é mesmo) o álbum “Os Mutantes” inventou, 50 anos atrás, um som que vai muito além deste século XXI. Na verdade, a modéstia dos três nunca os deixou assumir a paternidade do rock brasileiro, ao misturar o som das guitarras e muito experimentalismo, aos com sons tipicamente nacionais.
Arnaldo Dias Baptista vive uma longa e merecida calmaria existencial numa cidade mineira, dedicado à música e à pintura, e, em entrevista ao “Jornal do Brasil”, deu uma gargalhada quando o assunto é a invenção do rock brasileiro: “Hahahaha, claro que isso pode ser dito. Trouxemos para a música um lado psicodélico, cheio de efeitos especiais de guitarras, enfim, acho que inventamos o rock brasileiro, sim”. O álbum dos Mutantes foi relançado em vinil pelo selo Polysom, que também oferece um box com toda a discografia da banda, além de raridades.
Precursores do rock brasileiro
Antes de os Mutantes eletrificarem o país, a saudosa Jovem Guarda tocava uma versão do rock básico norte-americano. Mas quem jogou Beatles e Stones na panela e misturou com Jorge Ben (hoje Benjor), Humberto Teixeira, Sivuca e, claro, Caetano Veloso e Gilberto Gil foram os Mutantes, turbinados pela inquietação de Rogério Duprat. “Naquela época, ouvia muito The Mamas & The Papas, fascinado com os vocais do grupo, que nos influenciaram também”, revela Arnaldo Baptista.
O álbum dos Mutantes está conectado a um disco histórico, lançado um mês depois (julho de 1968) e que se chamou “Tropicalia ou Panis et Circencis”, um LP-manifesto que reuniu Caetano, Gil, Gal Costa, Nara Leão, Mutantes e Tom Zé - acompanhados dos poetas Capinam e Torquato Neto, e do maestro Rogério Duprat (de novo). Foi quando o caldo entornou e a Tropicália tomou conta do Brasil.
Quando entraram no estúdio para gravar o álbum de estreia, Arnaldo e Sérgio ficaram deslumbrados com os equipamentos de gravação, os painéis acústicos e aproveitaram para improvisar mais ainda. “Já estávamos com o repertório selecionado, porém, quando tivemos contato com os novos equipamentos no estúdio, improvisamos muita coisa. Processamos e reprocessamos sons de bateria, de guitarra. Estávamos nos sentindo livres e acho que esse sentimento passou para o disco”, acredita.
Grande baixista, que se dedica também aos teclados, ele diz que há um bom tempo não ouvia o álbum, mas que, recentemente, pôs no toca-discos, ficou surpreso com a quantidade e qualidade das experiências que fizeram. “Muitos sons absurdos e maravilhosos, é um disco totalmente futurista”, orgulha-se.
O mitológico maestro da Tropicália, Rogério Duprat, foi um mentor para Arnaldo Baptista. “O meu conhecimento de música vem da minha mãe, que era concertista e de meu pai, que era cantor lírico. O Duprat, além de estimular o meu lado clássico, me incentivou muito a estudar piano. Os takes de trompas e outros instrumentos de orquestra presentes nos Mutantes foram concepções dele”.
O primeiro álbum dos Mutantes foi eleito um dos 50 discos mais experimentais da história, pela cultuada e respeitada revista inglesa “Mojo”, na frente de nomes como Pink Floyd e Frank Zappa. Já John Bush, do maior guia de música do mundo, o site Allmusic, disse que “o álbum de estreia de Os Mutantes é de longe o melhor, uma viagem incrivelmente criativa, que assimila pop orquestral, psicodelismo lunático, música concreta, encontro de sons ambientes; e isso é apenas a primeira música. O álbum é muito mais experimental do que qualquer um dos produzidos pelas bandas da Grã-Bretanha ou da América da era psicodélica”.
A faixa de abertura do álbum é “Panis et Circenses” (“Pão e circo”, em latim) de Gil e Caetano. Segundo Rita Lee, Gil e Veloso compuseram a canção em 15 minutos. “A minha menina” vem a seguir e é de Jorge Benjor (na época, Jorge Ben). Ela começa com Jorge dizendo “agora tosse, todo mundo tossindo”, dando indícios do clima de altíssimo astral da música.
“O relógio” começa como uma simples balada com acordes de violão caseiro, mas depois funde tendências técnicas da música popular francesa e do rock psicodélico inglês, marcando a acentuada influência do Tropicalismo. A brasilidade se faz presente de novo em “Adeus, Maria Fulô” (1951) de Sivuca e Humberto Teixeira. Rita Lee sugeriu a gravação desta faixa para “abrasileirar” a sonoridade do grupo. É um baião com tratamento moderno, com o toque de rock dos Mutantes e o arranjo peculiar composto por Rogério Duprat.
A canção apresenta sons de ventos, batidas entre objetos de vidro ou metal e pios de passarinhos que tentam reproduzir a atmosfera seca do nordeste. É curioso não conter o principal instrumento do baião, a sanfona, nem do principal instrumento do rock, a guitarra.
Em “Baby”, de Caetano, Sérgio Dias faz os arpejos de base na guitarra, papel costumeiramente dado ao violão de cordas de náilon nas composições brasileiras. “Senhor F” é dos Mutantes, exceto pelos arranjos do maestro Rogério Duprat.
A canção é bem elaborada, com um ritmo que lembra standards de jazz, tornados mais agressivos, e soa também mais pop por causa da influência do rock. O piano é de Dona Clarisse Leite, mãe dos irmãos Baptista, além de ser responsável pelo riff de introdução, que lembra “Martha my dear”, dos Beatles.
De acordo com Rita Lee, a canção foi “chupada” de “Being for the benefit of Mr. Kite!”. Ela precede “Bat Macumba”, dos baianos. A percussão é baseada no candomblé, misturada ao efeito de distorção feito pelo engenheiro de som Cláudio César Dias Baptista, irmão de Arnaldo e Sérgio.
“Le premier bonheur du jour”, dos franceses Frank Gérald e Jean Renard, foi gravada originalmente por Françoise Hardy. Antes dos Mutantes, a canção fora cantada por Rita Lee no seu grupo, Teenage Singers. A faixa, originalmente, era um folk rock que foi transformada pelos Mutantes em um rock psicodélico.
Interessante o uso de uma bomba de inseticida ao invés do chimbau da bateria: como o som da bomba atingia o ápice de seu timbre exalando inseticida, e não água ou apenas ar, foi o que o grupo fez na gravação, deixando o estúdio impregnado do cheiro do veneno ao final da gravação.
“Trem fantasma” é parceria dos Mutantes com Caetano, enquanto “Tempo no tempo” é uma versão de “Once was a time I thought”, escrita originalmente por John Phillips para seu grupo, The Mamas & The Papas. Além do arranjo de vozes, da guitarra e do baixo, há uma tuba e uma corneta, instrumentos costumeiramente usados para criação de sonoplastia em filmes de comédia. A percussão da música é toda feita por estalar de dedos, que marca os tempos até o fim.
“Ave Gengis Khan” encerra o álbum e o tema é apresentado pelo piano em seus primeiros compassos, e, com o desenrolar da faixa, repetido junto a diversos instrumentos, em diferentedinâmicas e situações. Uma característica marcante da canção é a voz de César Baptista, pai de Sérgio e Arnaldo, que foi invertida em estúdio, para causar um efeito diferente na canção.
* Especial para o JB