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Cannes cai na real...idade

Seleção de documentários do festival francês, que começa hoje, é a mais ousada da década

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CANNES (FRANÇA) - Ímã de holofotes, por atrair celebridades de Hollywood e da Europa, o tapete vermelho de Cannes, munido pelas ficções selecionadas para as diferentes seções do evento, costuma exercer um fascínio tão grande entre os cinéfilos que, muitas vezes, ofusca os documentários inéditos que garantem ao festival uma cota de realidade. Mas, este ano, a concorrência entre fato e fantasia na Croisette pode terminar em 1 X 0 para a seleção que aposta no real como seu foco de interesse, a começar pelo esperadíssimo “Pope Francis – A man of his word”, um 3x4 de Sua Santidade, filmado pelo alemão Wim Wenders.

Agendado para o dia 14, o novo longa-metragem do realizador de “Buena Vista Social Club” (1999) é a cereja de um bolo com sabor documental que promete ser o mais ousado do festival nesta década, quando se trata de filmes que trocam a fabulação pelo relato verídico. Lembre-se: em Cannes, os documentaristas brigam por uma Palma específica, o troféu L’Oeil d’Or, criado há três anos e dado, em 2016, ao carioca Eryk Rocha, por “Cinema Novo”. Ano passado, quem venceu foi a veterana da Nouvelle Vague Agnès Varda, por “Visages, villages”. Tem coisas monumentais (em termos de duração) no bonde de documentários de Cannes deste ano, do tipo “Dead souls”, com 8h16 de projeção. É um trabalho inédito do chinês Wang Bing (de “A Oeste dos trilhos”) sobre exilados políticos que, há 60 anos, mofam no deserto de Gobi. Tônica investigativa similar dá Norte a um dos títulos mais esperados da mostra Semana da Crítica: o desenho animado documental “Chris the swiss”. Nele, a cineasta suíça Anja Kofmel reconstitui a morte de seu primo, um jornalista que pesquisava a guerra entre os povos da extinta Iugoslávia. Também há recursos de animação em “Samouni Road”, do italiano Stefano Savona, incluído na Quinzena dos Realizadores. Nele, o diretor anima depoimentos de moradores de uma zona rural vizinha à Faixa de Gaza que foi destruída por conflitos armados. 

“A programação de Cannes é articulada de modo a dar abertura a diferentes modos de olhar o mundo, que possam gerar poesia”, disse Thierry Frémaux, o diretor artístico de Cannes ao JB, ao explicar a concepção documental do evento, que traz uma radiografia do misticismo das crianças colombianas em “Our song to war”, da cineasta Juanita Onzaga, outro destaque da Quinzena de 2018. Na seleção oficial, onde Wenders e Bing aparecem como vedetes, há um projeto com cheiro de Oscar: “Whitney”, um retrato afetivo do cineasta Kevin Macdonald (de “O Último Rei da Escócia”) sobre a cantora Whitney Houston, morta em 2012, aos 48 anos. O filme aborda a sua jornada de sucesso da indústria fonográfica e nas telas, ao lado de Kevin Costner no hit “O guarda-costas” (1992). Também um aroma de Oscar em volta de “The State against Mandela and the others”, no qual Gilles Porte e Nicolas Champeaux, resgatam arquivos do julgamento do finado líder sul-africano, entre 1963 e 1964.     

Maio de 68 no cardápio de documentários Diante dos 50 anos de 1968, Cannes não deixou a efeméride de fora de seu cardápio de docs. O tema aparece em “La traversée”, de Romain Goupil, e em “A hora dos fornos”, clássico do cinema novo argentino feito por Fernando Solanas. Fala-se de Maio de 68, com seus protestos estudantis, ainda em “Jane Fonda in five acts”, de Susan Lacy. Estudiosa dessa data inflamada, a diretora alemã Margarethe von Trotta (de “Hannah Arendt”) aborda o fim dos anos 1960, de olhos grudados no legado de um dos maiores diretores que já passaram pelo cinema em “Searching for Ingmar Bergman”, projeto associado ao centenário do cineasta, morto em 2007.  

Uma das maiores preocupações de Cannes em 2018 será resolvida nesta quarta-feira: às 14h de amanhã (no horário francês) será resolvido o imbróglio judicial entre o produtor português Paulo Branco e o cineasta anglo-americano Terry Gilliam que pode (se pender para o lado luso) impedir a projeção do esperado “The man who killed Don Quixote” no dia 19, data do encerramento do festival. Branco levou Gilliam aos tribunais por divergências de orçamento, datas de finalização e direito patrimonial sobre o filme, que levou 18 anos para sair do papel. É o galês Jonathan Pryce (de “Brazil, o filme) quem encarna o Cavaleiro da Triste Figura nesta versão pop da prosa de Miguel de Cervantes. Hoje começa a disputa pela Palma de Ouro com “Todos lo saben”, produção espanhola do diretor iraniano Asghar Farhadi. Ao todo, 21 longas competem pelo prêmio, a ser entregue por um júri presidido pela atriz australiana Cate Blanchett.

*Rodrigo Fonseca é roteirista e presidente da Associação de Críticos do Rio de Janeiro (ACCRJ)