Na semana em que o presidente argentino, Mauricio Macri, teve um desgaste inédito com a disparada recorde do dólar e da inflação, a ex-presidente Cristina Kirchner (2007-2015) mostra-se novamente como boa estrategista. Colocou à venda "Sinceramente" (Sudamericana), um livro em que conta alguns bastidores do poder, ataca o atual governo, defende-se das acusações de corrupção e anuncia, nas entrelinhas, sua candidatura para as eleições de outubro deste ano.
O lançamento oficial da obra será apenas no dia 9 de maio, em um evento na Feira Internacional do Livro, de Buenos Aires, que está ocorrendo na cidade até 13 de maio. Distribuído às livrarias na manhã da última quinta-feira (25), em menos de 24 horas sua primeira edição, de 60 mil volumes, já estava esgotada. Neste fim de semana, uma nova impressão está sendo preparada às pressas, para que uma nova fornada do livro já esteja disponível nas livrarias na próxima segunda-feira (29).
O curioso é que esse fenômeno de vendas da ex-presidente ocorre num momento em que o mercado editorial argentino, por conta da crise local, não anda nada bem. Editoras grandes estão tendo prejuízo, e muitas das pequenas estão fechando, enquanto livros importados vêm custando cada vez mais caro por conta da alta do dólar. "As vendas não vão bem já há alguns anos, mas acreditamos que num espaço como a Feira do Livro se possa promover mais a leitura", disse à reportagem Oche Califa, diretor do evento que reúne ao redor de 1 milhão de visitantes todo ano. "Um milhão de visitas infelizmente não tem correspondido a um milhão de vendas, muitos vêm só para passear, mas esperamos estimular a compra das obras", conclui.
Nesse contexto, o furor por "Sinceramente" está deixando autores, editores e, principalmente, os políticos opositores a Cristina morrendo de inveja. Um livro considerado best-seller no país hoje vende por volta de 50 mil exemplares. Cristina vendeu mais que isso em apenas um dia e provavelmente dobrará essa marca na próxima semana. Enquanto na abertura da feira o secretário de Cultura de Macri, Pablo Avelluto, foi vaiado durante sua fala de inauguração, os organizadores do evento agora quebram a cabeça para resolver como vão fazer caber dentro do espaço tanto seguidores de Cristina no dia do lançamento de seu livro, cuja apresentação terá entrada gratuita.
Por outro lado, o livro, se analisado com atenção, não traz tantas novidades, e se nota uma edição feita às pressas, para aproveitar o "timing" político da má fase de Macri. Na obra, ela faz a defesa de seus filhos, especialmente de Florencia Kirchner, 28, internada para tratamento médico em Cuba, acusada de corrupção e cuja presença na Argentina é requerida pela Justiça local. Florencia teve transferidos à sua conta milhões de dólares cuja procedência é, supostamente, ilícita.
Chama atenção no livro a escolha da cor azul para a capa, num tom um pouco mais escuro que o celeste da bandeira argentina. É uma cor muito simbólica para evocar um "peronismo puro", algo que sempre é motivo de disputa em tempo de eleições -só neste período de pré-campanha há quatro candidatos peronistas.
Ainda na capa, a palavra "sinceramente", escrita à mão é corroborada pelos próprios editores, pois Cristina teria escrito o livro sozinha, sem "ghost writers" e passado por um processo de edição com quase nada de intervenção. Segundo a própria Cristina, não é uma obra nostálgica, e sim um retrato de como se sente hoje.
No livro, a defesa das acusações de corrupção é evasiva, não vai aos detalhes técnicos das investigações, e as classifica como uma "perseguição política". A ex-presidente admite ter cometido erros e evoca o movimento feminista que tomou o país nos últimos anos, mas do qual ela mesma nunca foi um símbolo, até aqui. "Sou Cristina, uma mulher, com tudo o que implica ser mulher na Argentina. Com uma vida em que se cruzaram sucessos e frustrações, acertos e erros, mas que foi honestamente vivida sem nunca abandonar minhas convicções."
Cristina também abre o jogo sobre como se sentiu ao ter de entregar o cargo a Macri: "Muitas vezes, depois do resultado divulgado, pensei na cena, em que eu entregava o bastão a Mauricio Macri!! Isso me destruía o coração. Mais pensei em muitas maneiras de faze-lo. Numa delas eu tirava a faixa e a deixava sobre uma mesa junto com o bastão presidencial, depois, dava as costas a ele (Macri) sem ver nada mais do que ocorria".
Na verdade, Cristina, depois de discussões diretas com Macri, acabou nem aparecendo no dia da posse. Quem entregou o mando do país a Macri foi o então líder do Senado, Federico Pinedo, que ficaria famoso em memes e piadas como "o presidente da Argentina por 12 horas", período em que, de fato, ficou com o poder, enquanto Cristina ia embora e Macri preparava-se para assumir. Cristina se abre sobre isso: "Todo o Cambiemos (aliança que elegeu Macri) queria essa foto minha entregando o mando do país a Macri. Então eu seria caracterizada como eles sempre me chamaram, a 'jumenta', a autoritária, por fim rendendo-se. Não podia deixar que isso acontecesse".
Não se conhece nem se pode prever nada sobre a eleição de outubro. Mas o fato é que a última semana, com Macri em queda por conta da situação econômica negativa e sem perspectivas de melhora rápida, e Cristina sabendo pegar a onda que está se formando em seu favor, configuram um quadro novo, quando até pouco tempo atrás se falava de uma reeleição fácil do atual presidente. Os próximos meses serão de disputa acirrada e sujeitos a novas surpresas.