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Terça, 6 de maio de 2025

‘Come Sunday’: O “canto de cisne” do legendário Hank Jones (1918-2010) 

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Hank Jones — falecido aos 91 anos, em maio de 2010 — era o mais longevo dos pianistas de jazz relevantes que continuaram ativos e criativos mesmo depois de terem ultrapassado o marco dos 85 anos. Três meses antes de sua morte, ele reuniu-se com outro herói do jazz, o septuagenário contrabaixista Charlie Haden, para gravar, em duo, o recém-lançado CD Come Sunday (EmArcy).

Esse registro merece destaque especial não apenas por ser o “canto do cisne” do último campeão do time de piano bop de Detroit, ao lado dos também eminentes Tommy Flanagan (1930-2001) e Roland Hanna (1932-2002). O álbum de 14 faixas (que variam entre 1m55 e 4m20) é também uma primorosa reflexão da dupla de ases do jazz — de caráter delicado, simples e intimista, mas ao mesmo tempo reverencial — em torno de spirituals e temas similares do hinário religioso americano assimilados e cultivados, desde o século 19, nos guetos negros e nas comunidades rurais do interior dos Estados Unidos.

Em 1994, Jones e Haden já tinham gravado um disco semelhante, intitulado Steal away: Spirituals, hymns & folksongs (Verve), indicado para o Grammy de melhor performance de jazz, em 1996. A seleção incluía alguns dos mais belos e significativos spirituals cultuados e cantados pelas congregações negras nos Estados Unidos até os dias de hoje, como Go down Moses, Nobody knows the trouble I’ve seen e My Lord, what a morning, além de canções não derivadas do Evangelho (Godspell ou gospel), como por exemplo Danny boy.

A temática de Come Sunday — a começar da faixa-título de 3m30 — é toda de origem sacra. Ou seja, diretamente derivada da adaptação feita pelos negros do hinário protestante imposto pelos colonizadores americanos, à qual se deu o nome de spiritual. A concepção é a mesma de dois outros álbuns marcantes produzidos por jazzmen também de grande prestígio: Goin’ home (SteepleChase), de 1977, da dupla Archie Shepp (saxes tenor e soprano)—Horace Parlan (piano); Blessed quietness (Atlantic), de 1996, do pianista Cyrus Chestnut.

O interplay intimista de Hank Jones e Charlie Haden, emergente já na própria exposição dos temas, tem ainda como referencial o bem mais recente duo de Haden com Keith Jarrett (Jasmine, ECM, 2007) — uma conversação musical gravada no estúdio de Jarrett (num de seus Steinways), a partir de conhecidos standards, direta e sem retoques, sem qualquer tentação exibicionista.

O baixo encorpado de Haden, sempre melódico — mesmo quando se apraz em fazer apenas o papel de walking bass — dá o tom particularmente aconchegante do CD logo nas duas primeiras faixas: Take my hand, precious Lord (4m20) e God rest ye merry, gentlemen (2m25) — este um hino natalino, assim como o alegre It came upon the midnight clear (2m55). O piano de Hank Jones abre e fecha Goin’ home (4m10) com acordes sombrios, mas o seu mood varia de acordo com as trouvailles de Haden, chegando a momentos bem swinging, à la Earl Hines, como em Give me that old time religion (2m55).

As faixas mais longas depois da inicial são The old rugged cross (3m50), Were you there when they crucified my Lord? (3m05) e Come Sunday (3m30). Destas, as duas primeiras, relativas ao tempo da Páscoa, têm tratamento celebratório, enquanto o tema consagrado por Duke Ellington é o ponto alto do disco em termos de piano “orquestral”, com uma aula de mestre Jones.

Vale a pena seguir o conselho de Tom Cole, da National Public Radio (NPR), ao comentar o álbum Come Sunday: “É música serena, profundamente envolvente. Pegue um par de headphones — não os de ouvido (earbuds) — e ouça atentamente. Melhor ainda, sente-se em frente de um par de alto-falantes, e você poderá ouvir Hank Jones trabalhando os pedais e Charlie Haden pinçando as cordas”.