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Domingo, 4 de maio de 2025

Luiz Orlando Carneiro: Piano sofisticado e humor britânico

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O pianista George Shearing, que morreu no último dia 14, aos 91 anos, era inglês, recebeu o título de Sir em 2006, das mãos da rainha Elizabeth, mas vivia nos Estados Unidos desde 1947. Cego de nascença, já tinha fama no seu país, mas “estourou” na terra do jazz quando gravou, em 1949, em quinteto, o 78 r.p.m. September in the rain, que vendeu quase um milhão de cópias. Aquele grupo – com Margie Hyman no vibrafone e Chuck Wayne na guitarra – durou até os anos 60, e teve grande sucesso de público e de crítica. Em 1952, ele escreveu Lullaby of Birdland, em homenagem ao legendário clube da esquina da Rua 52 com a Broadway (The jazz corner of the world), que foi o púlpito do bebop até cerrar as portas, em 1965. O pianista dizia ter composto essa melodia, que virou um standard imortal, em apenas 10 minutos, e acrescentava: “Mas garantiu-me 35 anos de carreira”.

Dominando o teclado com muita classe e notável fluência melódica, Shearing equilibrava delicadeza e destreza, aliando à sua formação clássica as harmonias “modernas” do bebop, na variante cool. Nunca mudou seu estilo, que se adaptava também a arranjos mais comerciais com orquestras de cordas.

Continuou a tocar em público e gravou muitos discos para os selos Concord e Telarc até o fim da década de 90. A coletânea da Telarc intitulada Reflections: The Best of George Shearing, 1992-98 é bem representativa do seu Indian Summer. Seu último CD, Like fine wine (Mack Avenue), foi gravado em outubro de 2003. Nele, o pianista lidera um trio (Neil Swainson, baixo; Reg Schwager, guitarra) em 14 faixas, e revisita peças marcantes na história do jazz moderno como Moose the mooche (Charlie Parker), Con alma (Dizzy Gillespie), Tricotism (Oscar Pettiford) e Giant steps (John Coltrane).

Apesar da cegueira, Shearing sempre viveu de bem com a vida. Nos anos 70, este JB promovia concertos de jazz no Rio, e o pianista foi a estrela de um deles, no Teatro João Caetano. Depois do show, fomos jantar – na companhia de Pedro e Maneco Muller – num restaurante em Ipanema.

Quando lhe dissemos onde estávamos, ele ficou muito satisfeito, sobretudo por que ouvia o bater das ondas do mar. Com delicadeza, expliquei-lhe que o restaurante não era na beira da praia, mas sim a algumas quadras do mar, e que o som aquático provinha de uma espécie de monjolo, que despejava água em intervalos regulares. Ele riu, e contou a seguinte história: Quando ainda morava em Londres, tomava o breakfast sempre no mesmo café, próximo à sua casa. No caminho, havia um sinal de trânsito. Como ele já era íntimo daquela esquina, aguardava o “verde” sonoro para atravessar a rua. Uma vez, alguém tocou-lhe o braço, anunciou sua condição de cego, e pediu-lhe ajuda para a travessia. Shearing tomou-o pelo braço, e o conduziu assim que o sinal soou. Ele disse que não conseguiu deixar de rir, ao imaginar as expressões de espanto dos passantes, ao verem um cego de óculos escuros e bengala conduzindo um outro cego, também munido de bengala.

Assim era Sir George, na vida e na arte. Polido e sofisticado. E cultor do humor britânico, of course.