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O mundo contra Lars von Trier

Polêmico diretor dinamarquês choca no festival de Cannes com comentários antissemitas na estreia de ‘Melancolia’, sobre o apocalipse

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É um filme sobre o apocalipse, feito por um diretor com histórico de depressão profunda, mas a exibição de Melancolia, na manhã de ontem, na competição do 64º Festival de Cannes, foi sucedida por um bem-humorado encontro com a imprensa. Mas o senso de humor  politicamente incorreto do dinamarquês Lars von Trier, o autor no centro da mesa, tomou um rumo constrangedor quando, perguntado sobre suas raízes germânicas, o ganhador da Palma de Ouro de 2000, com Dançando no escuro (2000), desfiou um rosário de supostas simpatias com o nazismo.

– Por muito tempo, pensei que fosse judeu, e estava feliz com isso. Então, conheci (a diretora dinamarquesa e judia) Susanne Bier (autora de Em um mundo melhor, vencedor do Oscar de filme estrangeiro desse ano) e não fiquei tão contente assim   – começou o diretor, sem perceber a cara de chocadas das duas protagonistas de seu novo filme, a anglo-francesa Charlotte Gainsbourg e a americana Kirsten Dunst. – Então, descobri que era nazista, que minha família era alemã, o que deixou sob maior pressão ainda. O que posso dizer? Eu entendo Hitler, até simpatizo com ele um pouco. 

O estrago já estava feito quando o diretor de Ondas do destino (1996), que usa de tiradas polêmicas para disfarçar a extrema timidez, percebeu o desconforto na apinhada sala de coletivas de imprensa. Só restou-lhe continuar com o jogo de impropérios, tentando, agora vender mais claramente um tom de zombaria. As justificativas foram ainda mais comprometedoras:

–  Não quero dizer  que sou a favor da Segunda Guerra e contra os judeus, nem mesmo contra Susanne Bier. De fato, sou a favor de todos os judeus. Bem, Israel é um pé no saco, mas... –  continuou von Trier, na esperança de que não fosse levado muito a sério. – Sim, gostaria de fazer um filme de grandes proporções. Nós, nazistas, gostamos de fazer coisas em grande escalas. Talvez eu faça A solução final (numa alusão ao plano sistemático de execução de judeus, imaginado pelos nazistas durante a Segunda Guerra). 

A extensão do prejuízo da impensada performance do realizador dinamarquês  trará para a carreira de Melancolia só poderá ser medida junto com a bilheteria do filme, que estreou ontem na França e chega ao circuito brasileiro em 5 de agosto. Tivesse acontecido nos Estados Unidos, onde a comunidade judia é bastante atenta a qualquer tipo de agressão ou preconceito, os prejuízos seriam mais imediatos. Basta lembrar do episódio recente envolvendo o ator e diretor Mel Gibson, condenado ao ostracismo depois de fazer comentários antissemitas após ser detido por dirigir embriagado, em 2006.

O que pode amenizar o peso sobre os ombros do diretor é sua reputação de enfant terrible do cinema europeu. Há dois anos, competiu em Cannes com Anticristo, uma trama macabra cheia de imagens eróticas e até uma perturbadora sequência de mutilação genital. Saiu daqui com o prêmio de melhor atriz, para Charlotte Gainsbourg. É também conhecido colecionador de excentricidades, como medo de avião, aversão ao convívio social e a grandes concentrações humanas: o diretor está hospedado em Mougin, nas colinas da cidade; em anos anteriores, costumava ficar em um luxuoso hotel em Cap d’Antibe, um município próximo a Cannes. 

O filme em si é o menos provocativo da lavra recente do diretor, embora título e conteúdo sugiram o contrário. A história é contada em dois capítulos, cada um batizado com o nome das duas irmãs protagonistas, antecedidos por um prólogo de imagens belíssimas, como quadros hiper-realistas em slow motion. A primeira parte é centrada na luxuosa e conturbada recepção de  casamento de Justine (Kirsten Dunst, a Mary Jane Watson da franquia Homem-Aranha),  durante a qual fica claro a crescente estado depressivo da noiva. A segunda gira em torno de Claire (Charlotte Gainsbourg), a irmã controladora de Justine, que a ajuda a superar a doença que arruinou seu casamento. Ao mesmo tempo, o planeta Melancolia aproxima-se perigosamente da Terra.

– Não é um filme sobre o fim do mundo, mas sobre um estado mental – resumiu von Trier, vítima confessa de um caso profundo de depressão, anos atrás. – Justine tem um histórico de mau humor, e espera que um evento cheio de limitações, como o casamento, a ajudará a estabilizar a sua vida, o que não acontece, e ela entra em depressão.

– Na segunda parte, à medida em que o mundo se aproxima do fim, Justine começa a se recuperar rapidamente, a ficar cada mais e mais forte – completou Kirsten. –  É como se, diante de uma tragédia inevitável, Justine recuperasse rapidamente suas forças, conseguisse se recompor psicologicamente. No final das contas, ela se torna a pessoa mais tranquila e sóbria da família diante do infortúnio.

A trama de Melancolia é distribuída por um elenco internacional, que conta com a contribuição de Kiefer Sutherland (o agente Jack Bauer da série de TV 24 horas), Charlotte Rampling, John Hurt, Stellan Skarsgard  e Udo Kier. O filme foi rodado em uma única locação, uma grande propriedade em Trollhatan, na Suécia, composta por um palacete, jardins e um campo de golfe.

– Fazer este filme me deu muito prazer. Acho que nos deixamos levar um pouco pelo lado romântico da história o que, na verdade, foi até bom experimentar. Eu até o rejeito um pouco por causa disso. Há uma grande possibilidade de que o filme não funcione bem. Pode até ser uma merda – comentou o diretor, novamente abusando da ironia.

Mais tarde, uma nota do cineasta foi divulgada pelos seus assessores em Cannes: “Se minhas palavras machucaram alguém esta manhã, eu, sinceramente, peço desculpas. Eu não sou antissemita, não tenho nenhum tipo de preconceito racial nem sou nazista”.