Em decisão histórica tomada em 17 de setembro, o Supremo Tribunal Federal (STF), por 8 votos a 3, considerou inconstitucionais os dispositivos legais que até então vinham propiciando que fundos empresariais financiassem campanhas eleitorais. A decisão deixa claro que a proibição de financiamento empresarial já será válida para as eleições de 2016. Em decorrência disso, a presidente Dilma – ao sancionar, no último dia 29, a minireforma eleitoral formulada na Lei 13.165/2015 – vetou o conteúdo que contrariava a referida decisão do STF. Essas duas decisões consolidam a vitória de uma longa luta das forças democráticas e progressistas da sociedade civil que, no bojo das demandas pela reforma política, colocavam como prioridade o fim do financiamento das eleições e dos partidos pelo poder econômico. Entretanto, como será visto no artigo, todo cuidado é pouco para que não haja retrocesso nessa decisão histórica.
A sentença do STF é a conclusão do julgamento da Ação Direta de Constitucionalidade (ADI) 4650, de autoria do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB), cuja petição inicial foi protocolada em 5 de setembro de 2011. O pilar do argumento dessa vitoriosa ADI foi a igualdade política e a delimitação de quem é portador de direito político: “a excessiva infiltração do poder econômico nas eleições gera graves distorções. […] ela engendra desigualdade política, na medida em que aumenta exponencialmente a influência dos mais ricos sobre o resultado dos pleitos eleitorais, e, consequentemente, sobre a atuação do próprio Estado […] prejudica a capacidade de sucesso eleitoral dos candidatos que não possuam patrimônio expressivo para suportar a própria campanha e tenham menos acesso aos financiadores privados, detentores do poder econômico […] cria perniciosas vinculações entre os doadores de campanha e os políticos, que acabam sendo fonte de favorecimentos e de corrupção após a eleição. […] Se não há igualdade política entre os cidadãos, o sistema político se constitui não como democracia, mas como aristocracia, como governo de elites. Com a captura da esfera política pela esfera econômica, a desigualdade que caracteriza a segunda é transferida para a primeira, o que leva, tendencialmente, à formação de um governo dos ricos, a uma 'plutocracia'. […] A doação para campanhas ou partidos se insere no sistema integrado pelos direitos políticos, que são restritos ao cidadão: não se trata de direito individual, passível de ser estendido também às pessoas jurídicas.”
A petição do CFOAB, a decisão do STF e o veto de Dilma ao financiamento empresarial vão ao encontro do que a grande maioria da população, segundo várias pesquisas de opinião pública, pensa em relação às campanhas eleitorais: que são caríssimas, que as empresas as financiam para favorecer seus negócios através dos políticos financiados e que as pessoas jurídicas devem ser proibidas de prover esses recursos financeiros. As fontes de financiamento eleitoral que continuam permitidas são o fundo partidário, a propaganda eleitoral gratuita e as contribuições de pessoas físicas.
No entanto, virando as costas para a opinião pública e para a mais que evidente relação causal entre financiamento eleitoral e corrupção, alguns parlamentares e lideranças políticas ficaram inconformados com a decisão da Suprema Corte, a começar pelo presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que arrecadou 6,4 milhões de reais em sua campanha para deputado em 2014, a maior parte proveniente de empresas cujos setores de atuação ele defende no parlamento, como mineração e telecomunicações. No dia 30, Cunha manobrou para impedir a continuidade da apreciação, pelo Congresso, dos vetos presidenciais a medidas de impacto fiscal(reajuste dos servidores do Judiciário e de benefícios previdenciários) enquanto não fosse colocado em votação o veto que, no dia anterior, Dilma havia conferido ao financiamento eleitoral empresarial. Renan Calheiros (PMDB-AL) não quis desrespeitar o Regimento do Congresso, quanto ao procedimento de apreciação de vetos, e nem atropelar o STF, Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e Dilma, ao passo que Cunha é inescrupuloso em relação aos ritos institucionais, como demonstra sua gestão na presidência da Câmara dos Deputados, por exemplo, recolocando em votação, de um dia para outro, matéria derrotada no dia anterior. Por outro lado, Michel Temer (PMDB-SP) foi procurado pela bancada da oposição (PSDB, DEM, PPS, PSB, SDD e PSC) para discutir a questão e manifestou publicamente seu compromisso, no próximo período, com a retomada da Proposta de Emenda Constitucional que constitucionaliza a contribuição empresarial.
Essas movimentações podem colocar em situação de risco a igualdade política no processo eleitoral, reconhecida pela recente decisão histórica do STF. Se o financiamento empresarial já está proibido e não há mais tempo hábil de mudar essa norma para as eleições de 2016, há forças políticas desejosas de que ele volte a ser permitido a partir das eleições gerais de 2018. Mas, a partir da decisão do STF, há toda uma linha de raciocínio entre os juristas que considera a igualdade política como cláusula pétrea, de modo que tentar reverter a decisão da Suprema Corte causará muita polêmica jurídica e política. As forças democráticas e progressistas da sociedade civil devem zelar contra o retrocesso e, além disso, demandar por demais medidas que garantam o cumprimento das novas regras eleitorais, como a criminalização do caixa 2, conforme disse o ministro Dias Toffoli, presidente do TSE.
A igualdade político-democrática no exercício do direito de votar e ser votado é o recurso básico que os cidadãos têm para eleger seus governantes e legisladores e, assim, contrabalançar as injustiças que os mercados, movidos pela competição e pela ganância de acumulação de capital e, em geral, controlados por uma minoria de gigantescas corporações, produzem. E sabemos que o Congresso não espelha proporcionalmente a diversidade social, racial e de gênero do povo brasileiro, sendo majoritariamente composto por brancos, ricos e homens. A igualdade política é um princípio fundamental para que a democracia brasileira de um passo à frente em seu caráter democrático.
* Marcus Ianoni é cientista político, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisador das relações entre Política e Economia e Visiting Researcher Associate da Universidade de Oxford (Latin American Centre)