D izem que os homens se dividem entre prometéicos e epimetéicos – os que fazem projetos e procuram cumpri-los, e os que se deixam conduzir pela esperança. Desde menino, nunca tive projetos pessoais. Confio na sorte, no destino e, em alguns momentos mais difíceis, na providência divina, sempre a última instância dos que sofrem. Todos nós vivemos momentos em que a Ele pedimos afastar de nossos lábios o cálice de fel.
Nas primeiras semanas de exílio, na Cidade do México, com minha mulher, meu filho, então com cinco anos, e minha filha, nascida ali, e apenas um mês de vida, vi aproximar-se o Natal.
Estávamos abrigados no apartamento de Abigail Pereira Nunes, que fora passar o Natal em Acapulco, em companhia de seus sogros brasileiros. Antes de viajar, quis emprestar-me algum dinheiro, mas eu lhe disse que não precisava. Tinha alguma coisa a receber de publicações mexicanas, para as quais redigira várias matérias. Infelizmente, nada recebi: os responsáveis pelo pagamento estavam em recesso de fim de ano.
Na manhã do dia 24, nada havia para comer. Em padaria próxima, comprei o litro de leite e o pão, que nos repartimos.
A recém-nascida, felizmente, contava com os seios maternos.
Sobraram-me uns vinte pesos.
Saí, a fim de comprar, no mercado próximo, alguns tamales, uma espécie de pamonha, para o almoço.
Não sabia como negar ao menino a festinha que tivera um ano antes, com direito a um falso papai-noel, com barbas de algodão. E fui negociando com a esperança. Se encontrasse uma carteira com uns mil pesos, faríamos a ceia e convidaríamos os outros exilados brasileiros.
Pouco a pouco, diminui a expec tativa, a fim de contar com a boa vontade dos anjos: de mil passei a quinhentos, de quinhentos a duzentos. Na volta, com os tamales embrulhados, achei que cem pesos já me quebrariam o galho. Ao aproximar-me da casa, com os bolsos vazios, encontrei o jornalista mexicano Armando Rodriguez, que se fizera meu amigo ao conhecer-me na redação da revista Política . Tinha um embrulho, com meio peru recheado, o queijo de Chiapas, e a garrafa de vinho. Queria convidar-nos, mas a sogra estava enferma, não festejariam – trazia a nossa parte do jantar.
Wania me contou que sua amiga Iracema (a mãe lera o romance brasileiro de José Alencar e lhe dera esse nome) estivera em casa e se horrorizado, ao pedir um chá e descobrir a cozinha vazia. Queixou-se de que nada lhe tivéssemos dito.
Pouco a pouco começaram a chegar sólidas mensagens de solidariedade, com o de comer e o de beber. E foi muito, muito mesmo. E o presente de Lázaro Cárdenas, o grande ex-presidente do México: um berço de vime para a nossa filha, que até então ajeitávamos em valise aberta, transformada em caminha. Em mala bem maior, acomodávamos o menino. Fizemos o que sonháramos: convidamos os nossos companheiros de exílio para que passassem a noite de Natal conosco.
Alguns mexicanos também chegaram, como o escritor Fedro Guillén, com um presente para nosso filho. À meia noite, trazido por um dos amigos mexicanos mais jovens, chegou o papai-noel de loja, que brincou um pouco com meu filho, espantado de ouvi-lo falar espanhol. Quando o menino adormeceu, ele, que já cheirava a tequila, abriu a túnica, retirou o trabuco, que lhe apertava a imensa barriga – um 38 cano longo – desculpou-se, e pediu que eu guardasse a arma até que, madrugada alta, despediu-se, levando seu litro de vinho. Nada faltou à farta e saborosa ceia de Natal, com nozes e castanhas, vinhos e licores, alegria e improvisado coral, quando cantamos, em portunhol, as canções conhecidas.
Tive, e tivemos, muitos natais marcantes pela alegria e pelas vicissitudes, antes e depois, mas nenhum foi tão farto e tão mais alegre do que o de 1964, no apartamento da Calle Xochimilco.
Por Mauro Santayana: [email protected]