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Cidade do Ceará mantém viva recordação de campos de concentração para retirantes criados em 1932

Marcelo Auler -
No Açude de Patu, religiosos de Iguatu mantêm um cemitério simbólico para lembrar que ali funcionou um dos campos de concentração do Ceará
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Senador Pompeu (CE) - Na madrugada de hoje, no sertão cearense, milhares de pessoas participam de uma romaria. Repetem uma devoção surgida há 36 anos. Desconhecida dos demais brasileiros, a Caminhada pelas Almas do Açude do Patu relembrará milhares de flagelados que sucumbiram na seca de 1932, em “campos de concentração”. Eram áreas de confinamento idênticas às criadas, a partir de março de 1933, por Adolf Hitler, na Alemanha.

A 36ª Caminhada Pelas Almas da Diocese de Iguatu (CE) mantém viva a memória da criminosa iniciativa do governo da época, verdadeiras “barreiras sanitárias”, como define o promotor de Justiça Geraldo Nunes Laprovitera Teixeira. Milhares morreram em seis dos também chamados “currais”, cuja criação, segundo os jornais da época, mereceu aplausos e elogios da sociedade e políticos cearenses. Foram vítimas da subnutrição, fome, doenças – fala-se em surto de cólera, peste e sarampo – enfim, do descaso.

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No Açude de Patu, religiosos de Iguatu mantêm um cemitério simbólico para lembrar que ali funcionou um dos campos de concentração do Ceará (Foto: Marcelo Auler)

Estavam amontoados e confinados para não “contaminarem” a capital que vivia seu momento de “Belle Époque”. A maioria dos mortos foi enterrada em grandes “valas comunitárias”, sem que “ninguém tomasse nota dos nomes deles, quase não era considerados pessoas e cristãos”, descreveu Afonso Ligório do Nascimento, um dos sobreviventes do campo de concentração de Senador Pompeu, antes de falecer, em 2008.

Eles viveram em péssimas condições sanitárias. “Junte-se condições sanitárias péssimas, pessoas que já vinham subnutridas, desgastadas de uma seca que se prolongava, e se confina estas pessoas. Tem-se ali a tempestade perfeita, todos os elementos para uma tragédia humanitária”, diz o promotor Laprovitera Teixeira. No relato da pedagoga Marta de Sousa, coordenadora do Centro de Defesa dos Direitos Humanos Antônio Conselheiro (CDDH-AC), o único médico de Senador Pompeu (cidade a 273 quilômetros da capital), Ernani Barreira, “passava mal por não ter o que fazer. Faltavam vacinas e remédios”. Se não bastasse, a melhor parte da comida enviada para o município era desviada na estação ferroviária. “Muitos comerciantes enriqueceram” afirma Marta.

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Galpão em ruínas na Vila dos Ingleses que podia servir de centro de triagem dos retirantes (Foto: Marcelo Auler)

Espécie de higienização

Na visão do padre Anastácio Ferreira de Oliveira, um dos religiosos de Iguatu que se empenha em manter viva a memória do que ocorreu, houve “uma espécie de higienização”. Ele é um dos que, a partir da devoção dos populares, ajudou a fazer de Senador Pompeu o único município a preservar a área usada como “campo de concentração”. Fica junto ao Açude de Patu, onde a igreja construiu um cemitério simbólico. É lá, sempre aos segundos domingos de novembro, que ocorre a celebração da missa em memória dos mortos, após o percurso a pé – com muitos fiéis descalços – dos cinco quilômetros que separam a matriz do local.

Esse ato religioso é que garante o registro deste episódio da história do Ceará. Os demais campos de concentração abertos no estado desapareceram. Sabe-se que existiram, identifica-se onde funcionaram, mas nos locais não há qualquer registro a respeito deles. Provavelmente, apenas cadáveres enterrados sem qualquer identificação. São áreas reutilizadas por empreendimentos distintos. Em Senador Pompeu, a disposição da Igreja é manter essa lembrança, até para evitar sua repetição.

“A Caminhada recupera a memória que muitos gostariam de esquecer. A destruição dos outros sítios não é só um descaso pela história, mas um descompromisso com os flagelados que foram vítimas da brutalidade. Nesse sentido, a Caminhada é um resgate que faz pensar, refletir, agir. Pelos mortos, se atinge os vivos. Por isso, há sempre um tema motivador que relaciona fé e política. Este ano é a relação ‘Água, Vida , Liberdade’”, conta o bispo dom Edson de Castro Homem, há três anos e meio à frente da diocese de Iguatu, que faz parte de Senador Pompeu. Ele se compromete consigo mesmo em comparecer a todas as caminhadas enquanto estiver no posto. “Se o sítio for conservado por tombamento, os 36 anos de Caminhada terão dado algum fruto. Os romeiros querem mais”, completa dom Edson.

A manutenção do Sitio Arqueológico do Açude do Patu é iniciativa da igreja, sem participação do poder público. Surgiu com o padre italiano Albino Donatti, que entre o fim dos anos 80 e 1995, morou na cidade. Donatti faleceu na Itália, em 2013. Foi ele também quem criou, junto com Marta, o CDDH-AC. Ambos apenas materializaram o que os fiéis cultivavam. Perceberam que populares encomendavam missas pelas “almas da barragem do Patu”. Ao se debruçarem sobre o assunto, padre e pedagoga deram início a um trabalho que mantém viva a memória da tragédia de 1932. Hoje, sem saberem, contam com o apoio do promotor.

Açude virou barreira sanitária

A construção do açude começou em 1919. A então Inspetoria Federal de Obras contra as Secas (Ifocas), o correspondente hoje ao Departamento Nacional de Obras Contra a Seca (DNOCS), contratou a empresa inglesa Dwight P. Robinson e Co.. Em meados dos anos 20, após os ingleses erguerem construções que atenderiam seus empregados e o projeto – casa dos engenheiros, escritórios, armazéns, casa de força, paiol, enfermaria –, logo denominada “Vila dos Ingleses”, a obra foi paralisada pelo presidente Artur Bernardes (1922/1926). Como registra uma surrada placa no local, o açude foi concluído sete décadas depois, em 6 de outubro de 1989, no governo de José Sarney.

Com a paralisação da obra, a Vila dos Ingleses foi utilizada, em 1932, como uma das “barreiras sanitárias” para evitar que flagelados da seca chegassem à capital. Como lembra o jornalista Luiz Scafura, assessor da Diocese de Iguatu, a partir do levantamento da historiadora Kênia Rios, da PUC-SP, no livro “Campos de Concentração no Ceará – Isolamento e Poder na Seca de 1932”, foram, pelo menos, seis “currais” de confinamento dos flagelados. Eram locais para onde flagelados eram atraídos com promessas de comida e assistência médica, mas dali não podiam sair sem autorização dos inspetores do campo. Guardas os vigiavam. Permaneciam retidos e milhares morreram de fome e doenças.

O campo de Senador Pompeu foi preservado, a partir da religiosidade dos populares, por iniciativa de padres como Albino Donatti, Anastácio Ferreira de Oliveira e o atual pároco da cidade, João Melo dos Reis. Este, ao assumir o posto há seis anos, incluiu a “Caminhada das Almas” no calendário oficial da Diocese.

Em seu comentário no Jornal da Manhã, na rádio Jornal de Iguatu, Scafura citou dados dos “campos de concentração” do Ceará. Não são oficiais, pois inexistem registros. Afinal, trata-se de uma parte da História do Ceará e do próprio Brasil que nenhum governo cuidou de elucidar. O que se tem são iniciativas pessoais, como da historiadora da PUC, ou do advogado e historiador Valdecy Alves, natural da região e hoje em Fortaleza.

Por estes dados, segundo Sucupira, 73.918 “molambudos” morreram nessas áreas de confinamento: 6.507, em Ipu; 1.800, em Fortaleza; 4.542, em Quixeramobim; 16.221, em Senador Pompeu; 28.648, em Cariús e 16.200, no Crato.

A imprecisão dos números é grande, como admite o promotor Teixeira. Ao assumir a promotoria do município, em agosto de 2015, ele encontrou uma investigação instaurada, porém, incipiente. “Os dados de mortes no local não são confiáveis, mas se estima que só em Senador Pompeu possam ter morrido entre 2.500 e 5.000 pessoas. Como lá, no auge, chegou a ter 20 mil pessoas, acredito na previsão de que um quarto das pessoas pereceram, morreram, um número estarrecedor”, diz.

O promotor luta pelo tombamento do Sítio Arqueológico do Açude do Patu, além do tombamento, como “bem imaterial cultural”, da Caminhada das Almas. Quer uma iniciativa da prefeitura. O atual prefeito, Antônio Maurício Pinheiro Jucá, assinou, em março de 2017, um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) comprometendo-se com tal iniciativa.

Até hoje, porém, nada fez. Em consequência, Teixeira ajuizou duas ações judiciais. Trata-se de um primeiro passo. Outros serão necessários, como investigar onde estariam os restos mortais dos que morreram no “campo de concentração”. Ele defende a identificação dos mesmos e o enterro em local conhecido, em cerimônia pública e oficial.

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Memória de sobrevivente

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Raimunda Correa do Nascimento (Foto: Marcelo Auler)

Raimunda Correa do Nascimento, 83 anos, casou-se com Afonso Ligório do Nascimento, em outubro de 1957 e viveram juntos “por 50 anos e 8 meses”. Natural de Senador Pompeu, Afonso, nascido em 31 de janeiro de 1929, foi para o Campo de Concentração em outubro de 1932, com três anos e nove meses, acompanhando os pais e seis irmãos. Ao longo da vida contou algumas histórias para a mulher, que recorda:

“Ele tinha muita emoção em contar aquela história. Ele e a família foram para lá porque não tinham com o que sobreviver. O pai olhava para um lado e para outro, a mãe com sete filhos, tudo criança”, diz Raimunda. Segundo ela, o marido contava que viajou no meio da carga, em um jumento, com um caçuá (cesto de vime) “de um lado e de outro e as crianças dentro”.

Entre as recordações mais marcantes do marido estava o dia em que a irmã dele morreu. “Ele contava que quando pegaram a irmã dele para botar dentro da valeta, com um horror de gente lá dentro, ele não queria deixar. Muito inocente, não sabia o que era a morte. A irmã não tinha nem três anos. Morreu de sarampo. Ele viu muita, muita gente morrer lá”, conta Raimunda, que vive em Senador Pompeu da aposentadoria dela e da pensão do marido. “É verdade que vai ser cortada a aposentadoria? É uma mentira, né?”

Marcelo Auler - Galpão em ruínas na Vila dos Ingleses que podia servir de centro de triagem dos retirantes
Marcelo Auler - Raimunda Correa do Nascimento