O governo do Ceará está realizando licitação que escolherá quem traçará uma cartografia da memória do estado. O processo entrou, segunda-feira, na fase de habilitação, aguardando, agora, a proposta de execução do projeto pela empresa escolhida. “Trata-se de um trabalho de pesquisa científica, de consultoria, para mapear todos os espaços de memórias do estado. Espaços relacionados aos processos de resistência do povo do Ceará à opressão”, explica Demitri Cruz, titular da Coordenadoria de Direitos Humanos do governo estadual.
A proposta da cartografia, segundo Cruz, foi o primeiro passo do Grupo de Trabalho sobre Memória e Verdade, criado pelo Decreto Nº 32.113, que o governador Camilo Sobreira de Santana (PT) assinou em 23 de dezembro de 2016. O grupo de trabalho busca “estabelecer uma política estadual de memória que preserve o legado das lutas populares e das violações de direitos humanos ocorridas ao longo da formação histórica do Ceará, atuando, também, no resgate da verdade histórica dos cearenses que se opuseram à ditadura civil-militar de 1964”.
Muito embora o grupo de trabalho tenha um foco para as atrocidades sofridas pelos cearenses no período da ditadura de 1964 a 1981, o trabalho que se iniciará deverá preencher outra lacuna da história do estado (e, consequentemente, do Brasil). Buscará levantar as perseguições a flagelados das muitas secas que atingiram o Nordeste. Nessas ocasiões, como o JORNAL DO BRASIL noticiou nas edições de domingo (11/11) –“Confinamento e mortes na seca” – e de segunda-feira (12/11) – “Caminhada em memória das vítimas da seca” –, milhares dos chamados “retirantes” do semiárido foram confinados em campos de concentração e ali morreram subnutridos, por doenças, sede e fome.
Na descrição de um relatório, de junho de 2017, da Coordenação de Patrimônio Cultural da Secretaria de Cultura do Estado, tais espaços de confinamento visavam isolar extratos sociais considerados “desviantes”, “improdutivos”, “flagelados” que buscavam formas de sobrevivência junto às cidades, notadamente a capital, Fortaleza. Ou, utilizando as palavras do promotor de Justiça da cidade de Senador Pompeu, Geraldo Laprovitera Teixeira, serviram como “barreiras sanitárias” com o propósito de, como definiu padre Anastácio Ferreira de Oliveira, garantir a “higienização” da capital cearense, que vivia seu momento de “belle époque”.
Embora marcantes na vida do Ceará e da história do Brasil, de um modo em geral, tais episódios só não caíram no esquecimento devido ao esforço e à religiosidade do povo cearense. A iniciativa de populares em encomendar missas pelas “almas da barragem do Patu” levou a Igreja Católica a instituir, há 36 anos, todo segundo domingo de novembro, em Senador Pompeu, a chamada “Caminhada pelas Almas do Patu”, como forma de reverenciar os milhares de flagelados que morreram e foram enterrados, até sem identificação, no campo de concentração montado em 1932, junto às obras do que, 50 anos depois, se tornou o Açude do Patu. Ali funcionou um dos sete campos de concentração espalhados por seis municípios.
Como já noticiou o JB, nas explicações do promotor Laprovitera Teixeira, a imprecisão dos números em torno da seca de 1932 é grande. Referindo-se ao campo do Patu, ele diz que “se estima que só em Senador Pompeu possam ter morrido entre 2.500 e 5.000 pessoas. Como lá, no auge, chegou a ter 20 mil pessoas, acredito na previsão de que um quarto das pessoas pereceram, morreram, um número estarrecedor”. Há, porém, números mais elevados, como os utilizados pelo jornalista Luiz Sucupira, extraídos de um estudo feito pela historiadora Kênia Rios, da PUC-SP, no livro “Campos de Concentração no Ceará – Isolamento e Poder na Seca de 1932”. Por esses dados, 73.918 “molambudos” morreram nessas áreas de confinamento: 6.507, em Ipu; 1.800, em Fortaleza; 4.542, em Quixeramobim; 16.221, em Senador Pompeu; 28.648, em Cariús e 16.200, no Crato.
Agora, com a iniciativa do governo do estado, nas explicações do governador ao JB, “o Grupo de Trabalho Memória e Verdade do Ceará tem como objetivo principal propor uma política que preserve o legado das lutas populares e da memória das violações de direitos humanos ao longo da história”.
A criação do grupo, segundo Camilo Santana, parece ter um foco mais voltado ao “resgate da verdade e da memória histórica dos cearenses que se opuseram à ditadura militar”. Vítimas de prisões e torturas que ele, à frente do Executivo estadual, tratou de “indenizar e pedir desculpas, em nome do governo do estado”. Fez isso por entender o que significaria para aqueles homens e mulheres anistiados, muitos dos quais, como lembrou, “foram presos lutando pelo direito à liberdade e à democracia”.
Ao contrário, porém, das comissões da Verdade que funcionaram no país, a preocupação dos cearenses se estenderá além dos períodos ditatoriais, em especial o que durou de 1964 a 1985. A ideia é que a partir dessa pesquisa seja promovido um levantamento que servirá tanto para trabalhar junto às escolas quanto para uma ação posterior de cultura e turismo.
Segundo o titular da Coordenadoria de Direitos Humanos do governo cearense, já existe um trabalho inicial junto às escolas, com “ações pontuais, a partir do relato de pessoas que vivenciaram o processo de repressão. Trabalhamos principalmente com vítimas da ditadura militar, mas a ideia é que a partir da cartografia ampliemos este processo de identificação de espaço de memória, através desta compilação de dados e informações já existentes, e de pesquisa de campo. Esperamos, com este projeto, ter esse retrato de todas as iniciativas, de todos os processos históricos, incluindo os campos de concentração, para fazermos a divulgação tanto na área de educação, como na de cultural e do turismo”.
Para gerações futuras
O governo do Ceará, através da Secretaria de Cultura, está providenciando o tombamento do sítio arquitetônico do açude do Patu. Há um tombamento inicial do que restou da chamada Vila dos Ingleses. Trata-se das casas que foram construídas pela empresa encarregada, em 1922, de iniciar a construção do açude do Patu, que acabou suspensa pelo governo do então presidente Artur Bernardes, e só foi concluída em 1980, no governo de José Sarney. Feito o tombamento e definida a cartografia, o passo subsequente, na explicação de Cruz, será “criarmos uma política de monumentos públicos para esses espaços. Um projeto de identificação física. Porque aquele lugar foi onde ocorreu aquele fato histórico, aquela violência. Então, a política de monumentalização seria um segundo passo”.
Vencido esses processos iniciais, Cruz diz que o governo do estado estará acertando uma dívida antiga. “A investigação do passado é fundamental para a construção da cidadania. Estudar o passado, resgatar sua verdade e trazer à tona seus acontecimentos caracterizam forma de transmissão de experiência histórica, que é essencial para a constituição da memória individual e coletiva. A história que não é transmitida de geração a geração torna-se esquecida e silenciada. O silêncio e o esquecimento das barbáries geram graves lacunas na experiência coletiva de construção da identidade nacional e local”. O Ceará tenta, agora, vencer o silêncio que durante décadas se fez sobre os trágicos campos de concentração.