SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Você quer voltar para casa? Se sim, pisque o olho. Você ama a mainha? Se sim, pisque o olho. Está sentindo dor? Se sim, pisque o olho, por favor.
São nos olhos do filho que a dona de casa Etiene Feijó de Melo, 50, guarda a esperança de se comunicar com o caçula, mas o olhar dele parece perdido. Jefferson Anderson Feijó da Cruz, 22, não anda, não fala e perdeu as funções cognitivas -não discerne fatos e nem expressa emoções. Respira com a ajuda de uma traqueostomia e se alimenta por meio de sonda.
"Eu chorei muito nesse último Dia das Mães. Foi a primeira vez que não escutei ele dizendo: 'mainha, te amo!'", afirma Etiene. Faz seis meses que o estudante está preso a uma cama de hospital após ter sido estuprado, apedrejado e espancado a pauladas por um agressor. O motivo: Jefferson é gay.
O crime chocou a pequena Moreno, cidade-dormitório da região metropolitana do Recife (PE), e jogou luz na demora da Justiça em prender o acusado identificado no inquérito policial e na denúncia do Ministério Público.
A defesa do acusado, um jovem de 25 anos, não foi localizada pela reportagem.
Naquele 7 de dezembro de 2018, Jefferson estava com o sorriso largo, lembra Gabrielle Maria da Conceição, 19. Ela e mais cinco amigos foram convidados por ele para uma noite regada a cachaça na praça da Bandeira, lugar mais descolado da pequena cidade de 62 mil habitantes.
Jefferson tinha motivos para comemorar. Havia concluído o ensino médio e planejava com a ajuda do pai entrar na universidade. Contou aos amigos que queria ser fotógrafo e também pensava em cursar direito.
A amiga diz que o encontro avançou pela madrugada, porque a cidade também estava em festa. Era dia de Nossa Senhora da Conceição, santa padroeira de Moreno.
Entre um gole e outro, a adolescente conta que viu o acusado, um homem que ela conhecia apenas de vista, se aproximar aos poucos do amigo. Na primeira investida, ele pediu um gole de cachaça. Um tempo depois, quis beijar o Jefferson. "Dá para a gente ficar?", teria perguntado o acusado.
Segundo Gabrielle, Jefferson respondeu: "Oxe, eu tenho namorado e não preciso disso não". Ao longo daquela madrugada, a adolescente diz que Jefferson reclamou muito que o acusado estava "encharcando", uma gíria local que significa "insistindo".
Em uma das idas ao banheiro com o amigo, Gabrielle diz que Jefferson contou que se sentia ameaçado sendo gay e vivendo no interior do Brasil. "Eu ia ficar tão mal se apanhasse por ser gay que nem teria coragem de sair de casa", disse ele, segundo a amiga.
Minutos depois de revelar o medo, ele entraria nas estatísticas de violência contra os LGBTs no país. De acordo com o Atlas da Violência do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), cresceu 10% o número de notificações de agressão contra gays e 35% contra bissexuais de 2015 para 2016, chegando a um total de 5.930 casos -de abuso sexual a tortura.
Jefferson foi espancado quando saiu da praça para urinar pela segunda vez em um beco do prédio do Detran (Departamento de Trânsito) de Moreno. Ele foi seguido pelo acusado, que depois foi visto pelos amigos da vítima com as mãos ensanguentadas, além de ter sido gravado por câmeras de segurança deixando o local do crime.
"Eu perguntei: cadê o Jefferson? Ele me empurrou e disse que o Jeff estava vindo", conta a amiga Gabrielle.
Não se sabe quanto tempo durou a sessão de tortura. A maioria dos golpes, segundo a Polícia Civil, atingiram a cabeça da vítima.
Jefferson foi encontrado banhado de sangue e desacordado. Estava de bruços, com a cueca descida até os joelhos e a camiseta levantada.
Russeaux Vieira de Araújo, promotor responsável pelo caso, disse que o acusado teve duas intenções. "A primeira foi a de estuprar o rapaz e, a segunda, mediante violência física, de subtrair o celular dele", diz.
Jefferson foi socorrido pelos amigos e levado a uma Unidade de Pronto Atendimento, mas deixou o local rapidamente devido ao agravamento de seu quadro de saúde. "Ele estava desfigurado", diz o tio George Dean de Oliveira, 49.
No Hospital da Restauração, no Recife, foi direto para a UTI, onde ficou um mês em coma. Com um quadro mais estável, foi transferido ao Hospital Tricentenário, em Olinda (PE), onde está internado hoje.
O episódio mudou os rumos da família Feijó de Melo. Etiene se mudou para Olinda com o marido Marcos, para uma casa colada ao Tricentenário. "Toda a atenção é para ele. Espero ver meu filho sair disso um dia", diz a mãe.
A família deve contratar em breve uma equipe composta por enfermeira, fisioterapeuta e fonoaudiólogo para prestar assistência ao filho em casa.
"Sem esse apoio multiprofissional, eu não posso liberar o paciente, que apresenta sequelas neurológicas graves", afirma o médico Antonio Neto.
A assistência só será possível porque o caso de Jefferson gerou numa vaquinha virtual que arrecadou R$ 123 mil, com o apoio de 1.941 doadores.
Izabella Oliveira, prima dele e idealizadora da iniciativa, diz que o recurso trouxe alívio. "Sabemos que o Jeff vai precisar dessa assistência, talvez pela vida inteira. Estamos mais tranquilos, porque a nossa família não tem recurso para esse custeio". Uma segunda vaquinha está em curso e prevê arrecadar mais R$ 70 mil.
Etiene diz que a família é evangélica e sabia que Jefferson é gay, mas nunca havia tocado no assunto. "O máximo que eu pedia era que ele não levasse nenhum homem para dentro de casa". Mas nada explica a violência que o filho sofreu, diz ela. "Queremos Justiça. Queremos que o rapaz que fez isso com ele seja preso. É o mínimo."
O promotor vê no episódio uma conotação homofóbica clara. "O acusado manteve um intenso assédio contra o Jefferson. E mesmo tendo recusada a prática sexual, esperou o estudante se colocar em posição de fragilidade para agredi-lo e violentá-lo sexualmente a força", explica.
"O acusado é conhecido na cidade como 'papa frango', uma expressão usada para homens que fazem sexo com homens em troca de dinheiro", completa o promotor.
Apesar disso, diz Russeaux, o acusado não foi denunciado por homofobia, mas por estupro com agravante de lesão corporal grave, além de roubo. "Ainda não havia previsão legal para tipificar a homofobia."
Foi no dia 23 de maio que o STF (Supremo Tribunal Federal) formou maioria dos ministros para enquadrar a homofobia como um dos crimes de racismo, até o Congresso aprovar lei sobre o tema.
Agora, diz o promotor, caberá à Justiça aceitar ou não o pedido de prisão preventiva do acusado.
Em nota, o Tribunal de Justiça de Pernambuco afirma que o processo está sob segredo de Justiça por se tratar de crime sexual. O tribunal acrescenta que o juiz João Ricardo da Silva Neto, da Vara Criminal de Moreno, analisa o processo, que está na fase de instrução, desde 28 de fevereiro.