Na mesma sala do 26º andar do Edifício Itália, no centro de São Paulo, onde defendeu 512 presos e perseguidos políticos pela ditadura militar, o advogado criminalista José Carlos Dias mostra disposição para começar tudo de novo.
Aos 80 anos, Dias lidera a Comissão Arns Contra a Violência, criada em março, agora integrada por CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), ABI (Associação Brasileira de Imprensa) e OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).
As três entidades da sociedade civil recentemente renovaram suas direções nacionais e tiveram importante papel na redemocratização durante a campanha das Diretas-Já, em 1984. O movimento será oficialmente lançado em Brasília, no próximo dia 8, na sede da OAB.
Ex-ministro da Justiça do governo Fernando Henrique Cardoso, em 1999 e 2000, e ex-presidente da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, nos tempos de dom Paulo Evaristo, o advogado conta o que levou à criação da Comissão Arns.
"Nós nos unimos na luta contra a violência e o ódio", diz, e faz uma advertência: "A democracia hoje corre risco de termos a ditadura de volta pelo voto".
Na última entrevista que concedeu à Folha, pouco antes de morrer, o escritor Antonio Callado disse: "Lutei sempre do lado certo. Perdi todas".
Esse não é o caso de José Carlos Dias, que também lutou sempre do mesmo lado, ganhou muitas batalhas e perdeu outras, mas ainda não desistiu.
O que levou a sociedade civil a se mobilizar novamente, com a criação da Comissão Arns Contra a Violência?
JOSÉ CARLOS DIAS - Foi a necessidade de nós reatarmos aquela união que se deu na luta pelas Diretas-Já. Naquela época, nós estávamos todos juntos no mesmo palanque. Depois, nós nos separamos e nos iludimos e hoje estamos vivenciando uma situação terrível. Nós nos unimos de novo na luta contra o ódio e a violência. Nas vésperas do segundo turno, eu disse que só o Bolsonaro era capaz de me fazer votar no PT.
Em que momento você sentiu esse clima de intolerância?
JCD - Eu fui com outros agentes do direito entregar um manifesto de apoio ao Haddad e, ao sair do hotel para pegar um táxi, passou um carro com duas mulheres que começaram a me insultar, me chamaram de "comunista e filho da puta". Não posso imaginar agora como podemos continuar divididos quando nós estamos lutando contra um inimigo comum. Até dentro da mesma família tinha pessoas se digladiando.
Na sua família isso aconteceu também?
JCD - Também. No fim de dezembro, eu e o Paulo Sérgio Pinheiro começamos a conversar sobre a necessidade de nós nos unirmos outra vez. Marcamos uma reunião na casa dele com outras pessoas, entre elas o Bresser Pereira, a Margarida Genevois, Antonio Mariz de Oliveira, Paulo Vannuchi, André Singer e Belisário dos Santos Junior. Resolvemos criar uma comissão com o nome do nosso padroeiro dom Paulo Evaristo, porque ele foi a síntese de toda a oposição séria deste país desde a criação da Comissão de Justiça e Paz, em 1972.
No ato de criação da Comissão Arns, em março, vocês calcularam mal a presença de público, metade das pessoas teve que ficar em pé do lado de fora. Muita gente estava se reencontrando depois de muito tempo...
JCD - É verdade, foi uma beleza. O diretor da Faculdade de Direito da USP abriu para nós o salão nobre, mas acharam que era muito grande e aí se optou pela sala dos estudantes, que tem muita tradição, mas é pequena. Uma comissão foi formada pelos 20 fundadores e outras pessoas de várias entidades foram aderindo com o tempo.
O objetivo da Comissão Arns é zelar pela preservação dos direitos humanos e denunciar as graves violações desses direitos no atual governo.
Diante disso, a democracia e o Estado de Direito correm risco nesse momento?
JCD - Eu acho que a democracia corre risco de termos de novo a ditadura, agora pelo voto. Porque nós temos como presidente uma pessoa absolutamente desequilibrada. Tenho muito receio de um retrocesso nas conquistas democráticas que tivemos nos últimos 30 e tantos anos. A sociedade civil hoje tem pulmões que a fazem respirar, e a Comissão Arns pretende ser um desses pulmões.
Como jurista, que análise faz das revelações feitas pelo site The Intercept Brasil sobre os diálogos mantidos entre o ex-juiz Sergio Moro e os procuradores da Lava Jato?
JCD - É inacreditável imaginar-se que um juiz e um procurador fiquem trocando figurinhas e preparando as jogadas para condenar alguém, para forjar provas. Eu estou absolutamente decepcionado com o Supremo Tribunal Federal. Esse último gesto do Toffoli, envolvendo a pessoa do filho do presidente...
É inimaginável que ele monocraticamente impeça o progresso das investigações e ainda por cima marque para novembro o julgamento pelo plenário. Teria que ser na primeira sessão depois do recesso. Espero que a Procuradoria-Geral da República tome uma posição de contestação a essa decisão do Toffoli.
Até o momento, não se nota nenhuma reação da sociedade civil a todos esses fatos e a Lava Jato continua com forte apoio popular segundo as pesquisas. O que explica esse silêncio?
JCD - A sociedade foi induzida em erro, imaginando que a Lava Jato fosse imparcial, fazendo investigações em todos os campos. Hoje, aberta a barriga, o que se vê é a manipulação entre Ministério Público e magistratura. O Moro enganou muita gente. Deu a impressão de que era um juiz independente e, agora, feita essa laparotomia exploratória, o que se vê é que os intestinos estão misturados de tal forma que não existe a preservação da independência. É um grande desaponto.
Que avaliação o senhor faz dos primeiros seis meses do governo Bolsonaro?
JCD - Eu tenho um sentimento de medo, indignação e tristeza.
Quais serão os próximos passos da Comissão Arns?
JCD - Nós temos o dever agora de debater o problema da violência no plano nacional, com os olhos voltados para as graves violações de direitos humanos em todos os campos -o meio ambiente, a liberdade de expressão, educação, saúde, enfim, é uma variedade de temas que temos de pautar.
Quem vai comandar a Comissão Arns?
JCD - Por proposta minha, nós escolhemos o Paulo Sérgio Pinheiro, mas ele está no exterior porque ainda tem a missão da ONU na Síria coordenada por ele, não podia aceitar. Sugeri que fosse outra pessoa, apresentei vários nomes, mas está todo mundo querendo que eu seja. Acho que vai sobrar pra mim. Vou começar tudo de novo...
Como o senhor vê o papel dos militares no governo, com tantos generais em postos de comando no Palácio do Planalto?
JCD - Eu acho que nunca teve tantos... Mas eu tenho a impressão de que eles estão muito mais civilizados do que o presidente. O papel deles é conter a fúria do presidente.