A necessidade de “produzir esperança para corações aflitos” e uma suposta crescente demanda internacional por cloroquina foram apontadas como justificativas do Exército para ter pago 167% a mais pelo principal insumo para produção do medicamento, de acordo com ofício enviado ao Tribunal de Contas da União (TCU), que investiga uma suspeita de superfaturamento na negociação.
O ofício foi enviado ao TCU no final de julho deste ano e tornado público agora, depois de demanda da agência de dados públicos Fiquem Sabendo, com base na Lei de Acesso à Informação (LAI).
Em maio deste ano, o Exército comprou 600 quilos de difosfato de cloroquina, o insumo para produção do medicamento, a 1.304 reais o quilo, do grupo Sul Minas, que importa o insumo da Índia. Em março, o mesmo grupo havia cobrado 488 reais o quilo, mesmo valor da compra feita em 2019. De acordo com o ofício do Exército, a empresa mantivera o mesmo valor porque ainda teria estoque do produto.
Na justificativa enviada ao TCU, o Exército apontou o aumento do valor do dólar --45% no período-- e uma suposta crescente demanda pelo insumo como responsáveis pelo aumento.
Citou, ainda, a necessidade da compra emergencial - que foi feita com dispensa de licitação com base na Medida Provisória 926 que permitiu a aquisição de bens e insumos emergencialmente para combate à pandemia - o mais rapidamente possível por uma determinação do governo da Índia de suspender a exportação dos insumos.
No entanto, em outro pedido feito com base na LAI e tornado público no site de acesso à informação do governo federal, um ofício do Ministério das Relações Exteriores à assessoria internacional do Ministério da Saúde, após contato com o governo indiano, informa que não havia restrição alguma.
Ao contrário, de acordo com o MRE, o governo do país indicou três empresas para fornecer o insumo, e uma delas faz uma oferta de 190 dólares por quilo. Em resposta ao TCU, o Exército disse que a oferta foi descartada porque não incluiria transporte e outros custos de importação.
O ofício do MRE cobra, ainda, uma resposta do ministério de uma oferta de venda, por parte da Índia, de 5 milhões de comprimidos prontos de hidroxicloroquina, uma versão mais moderna e com menos efeitos colaterais da cloroquina. Essa possibilidade não é tratada na resposta do Exército ao TCU.
O governo brasileiro ainda recebeu uma doação de 3 milhões de doses de hidroxicloroquina do governo norte-americano e do laboratório Novartis, o que põe em cheque a alegação de demanda global crescente e urgente pelos insumos.
SEM COMPROVAÇÃO
Para justificar a pressa em fechar a compra, o Exército alegou que não fazê-lo poderia causar “dano irreparável ou de difícil reparação”, já que não se poderia produzir o medicamento que seria usado para “salvar vidas na pandemia causada pela covid-19.”
Apesar da alegação, o próprio Exército reconhece no ofício que não há eficácia comprovada do uso de cloroquina no tratamento para covid-19.
“Impõe registrar que, até a presente data, não há tratamento consagrado pela comunidade científica para a covid-19”, diz o ofício, afirmando ainda que tratamentos experimentais não foram concluídos.
Ainda assim, justificou o Exército, a compra dos insumos e a produção do medicamento teria sido uma decisão para agir “proativamente” e responder às “prementes necessidades de produção” da cloroquina que, por ter baixo custo, “seria o equivalente a produzir esperança a milhões de corações aflitos com o avanço e os impactos da doença no Brasil e no mundo.”
De julho para cá, apesar da insistência do presidente Jair Bolsonaro no uso da cloroquina, a comunidade científica internacional praticamente abandonou qualquer esperança de eficiência do medicamento.
Ainda assim, o governo brasileiro mantém a cloroquina como uma possibilidade em um suposto tratamento precoce da covid-19.
Até novembro, de acordo com o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, o Ministério da Saúde já teria distribuído 5,8 milhões de comprimidos de cloroquina para Estados e municípios -- segundo ele, sob demanda, apesar de, inicialmente, os secretários estaduais terem reclamado que o governo federal estaria empurrando o medicamento.
O excesso de produção de cloroquina pelo laboratório do Exército, e o alto custo dos insumos, levou à investigação do TCU, a pedido do subprocurador-geral do Ministério Público de Contas da União Lucas Furtado, por possibilidade de superfaturamento.
O subprocurador pediu ainda que seja apurada possível responsabilidade do presidente Jair Bolsonaro na superprodução de cloroquina.
No ofício, o Exército não trata sobre a origem da ordem para que se multiplicasse exponencialmente a fabricação do remédio.
Outros pedidos feitos com base na LAI e disponibilizados no site do governo federal mostram reiterados pedidos de estabelecer a corrente de comando para se estabelecer de onde veio a ordem para a produção, mas ou tiveram respostas indeferidas ou parcialmente respondidas, sem apontar para Bolsonaro.
Em março de 2020, logo depois de voltar de viagem aos Estados Unidos, o presidente disse a jornalistas que, em uma reunião com o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, decidiu que o Laboratório Químico e Farmacêutico do Exército iria ampliar a produção. Dois dias antes, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, afirmara que havia testes promissores com a cloroquina contra a Covid-19.
Procurados, o Palácio do Planalto e o Ministério da Defesa não responderam de imediato a pedidos de comentários. (com agência Reuters)