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Qual a cor da Psicologia no Brasil?

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Há um dado curioso em relação à formação em Psicologia no Brasil. A imensa maioria dos currículos não contempla disciplinas que abordem a saúde mental da população negra, bem como não contempla intelectuais negros e negras em suas bibliografias. Isso, por si só, já configura uma fatalidade tamanha, posto que 54% da população brasileira são negros. “Mas a problemática da saúde mental negra é recente, os currículos estão começando a se adaptar aos novos tempos”, costumam dizer psicólogos e professores brancos. Pois bem, Virginia Bicudo, socióloga e psicanalista brasileira, defendeu sua dissertação de mestrado em 1945, na qual evidencia os efeitos do racismo nas pessoas negras e nas suas relações interpessoais. Sete anos depois, Frantz Fanon, psiquiatra martinicano, publicou o livro “Pele negra, máscaras brancas”, que é referência nos estudos da saúde mental da população negra. Nos anos 70/80 surge nos Estados Unidos a Black Psychology. Não há espaço aqui para fazer um apanhado histórico de todas as publicações sobre o tema, quero especialmente alertar para o fato de que a razão pela qual os currículos de graduação em Psicologia não abordam a saúde mental da população negra é uma só: racismo.
O mito da democracia racial, tão arraigado no imaginário da população branca brasileira, somado à lógica do humanismo ocidental, produziu a falsa percepção de que seríamos todos iguais. Na teoria é bem bonito, porém na prática 75% da população brasileira mais pobre são negros; a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil; a expectativa de vida das pessoas negras é seis anos menor do que a de pessoas brancas; a renda familiar per capita de famílias brancas é, em geral, mais de 200% maior do que a renda de famílias negras. O discurso já não se sustenta diante desses dados. A negação da humanidade africana por quase quatro séculos tem efeitos diretos nos dias de hoje, não apaga a história de opressão racial que a população negra sofreu por parte de brancos nem apaga seus desdobramentos contemporâneos.
Durante a chamada Expansão Marítima e o subsequente período colonial, o conceito de raça negra foi criado por europeus para legitimar a subjugação dos povos africanos. Após a abolição da escravidão, brancos introduziram a ideia de democracia racial pautando-a no fato de negros, assim como brancos, serem enfim livres. Porém, após quase 400 anos de escravidão, não há frase de efeito capaz de recuperar os danos materiais e psicológicos sofridos por negros e negras. A devida reparação histórica material à população negra nunca se deu, o que tem como efeito as estatísticas supracitadas.
Em se tratando de reparações psicológicas aos traumas do racismo, será possível cuidar da saúde mental da população negra sem considerar a singularidade de ser negro?
Quando abri a porta do consultório pela primeira vez para João (nome fictício), ele me olhou um tanto surpreso e perguntou: você é o Lucas? Sim, respondi. João sorriu e sentou-se no sofá. Estava se sentindo em casa. Partilhou suas questões doídas com um leve sorriso no rosto. “É tão bom não precisar explicar o que estou sentindo”, ele disse ao longo da sessão. “Bom sentir que você está me entendendo”. O paciente é um jovem negro que iniciava terapia pela terceira vez, mas agora com um psicólogo negro. Ao longo de suas tentativas anteriores de cuidado em saúde mental, João chegou a ouvir por parte de psicólogos brancos frases como “você acha que ainda existe racismo no Brasil?”; “sofrimento não tem cor”; “você não acha que está atribuindo a causa de tudo à questão racial?”. Enunciados que tinham como efeito direto deslegitimar o sofrimento do paciente e, como consequência, fazê-lo experimentar a solidão de ser negro, de não ser compreendido nem acolhido devidamente.
Ser cuidado por um psicólogo negro, e que pesquisa sobre a singularidade das subjetividades negras tem gerado reparações possíveis aos danos psicológicos que o racismo causa. Para além da formação em Psicologia no Brasil ser branca, há uma dimensão da subjetividade negra que apenas outro negro consegue acolher. João sentiu isso desde a primeira sessão e respira aliviado a cada encontro por não precisar explicar.

* Psicólogo, mestre em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense

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