Escrevo este texto a partir da estrutura do primeiro capítulo do livro bíblico de Lamentações. Não se trata de exegese nem sequer paráfrase. O texto é meu e não reconheço nele nenhum imperativo divino. As ideias políticas que tenho e as percepções adquiridas da sociedade brasileira não são sentenças legitimadas por supostas orientações bíblicas. Portanto, este texto está crivado das minhas vontades e subjetividades. Não é divino. É humano, demasiadamente humano.
• Como está desassossegado o Brasil. A nação que despontava como potência mundial no início do século 21, no fim da segunda década dá sinais de conformação com o papel de subalterna no sistema internacional.
• O paraíso tropical habitado por uma população cordial vive hoje um “baixo astral” tamanho. As lágrimas correm os rostos dessa nossa gente aperreada, triste, pessimista, porém bronzeada.
• O povo brasileiro considera fortemente a possibilidade de migrar para Portugal. Triste metáfora da reversão da nossa colonização. O cálculo é que, se a escravidão no Brasil foi marcada por ferro e fogo, hoje, o surto migratório representa refrigério ou desafogo.
• Nossas praças estão vazias. Exceto, as praças de alimentação dos shoppings. O nosso povo sofre amargamente. Os nossos jovens estão com crise de ansiedade. As festas religiosas só agravam o tédio.
• Os especuladores do mercado financeiro abrem champanhe. Aqui as regras só são para o povão viver regrado. Estamos trabalhando para pagar as dívidas. Em nome do progresso econômico se admite o domínio das nações centrais. Hoje nos orgulhamos dos esculachos externos e da nossa condição subalterna na globalização.
• A beleza do Brasil está comprometida. O nosso esplendor parece ter chegado ao fim. A crise de confiança se generaliza e parece aguda. Nossos líderes caminham exaustos na frente dos perseguidores sem condições de nos dizer que há esperança.
• Dias de tristeza e aflição em que se anuncia a fraquejada da nossa democracia. O buraco do pré-sal é bem mais embaixo. Quem tem fôlego para mergulhar lá no fundo e força para sugar o petróleo, pode levar. O sentido de soberania nacional parece incompatível com a noção de livre mercado.
• O Brasil parece ter perdido a honra, terra de ninguém. Está nu. De player mundial à condição de nação periférica. Quintal dos Estados Unidos e primo pobre dos Estados europeus. Subalterno com o seu complexo de vira-lata.
• É fácil ver a mancha do seu pecado. Nossa terra tem palmeiras, sabiás, várzeas floridas, bosques e rios. Nossa cultura é marcada pela corrupção em que uns poucos querem ser proprietários da nossa biodiversidade. Corrupção sistêmica em que elites e liderados, contaminados pela ambição, competem à condição de malandragem. Fácil projetar toda a corrupção num grupo político ou num bode expiatório.
• Os inimigos se aproveitam da nossa vulnerabilidade para convencer-nos a privatizar tudo. Hoje os brasileiros formados em economia pelas redes sociais insistem em dizer que o melhor é entregar tudo aos gringos, porque somos incapazes de gerir tantas riquezas.
• Parcela significativa da população brasileira vivia abaixo da linha da pobreza, sem teto e sem educação, sem saneamento básico e sem perspectiva de que os filhos teriam mais chances do que os pais tiveram. Entre nós, os projetos de inclusão foram ridicularizados. Os gastos públicos foram congelados. Parcela da classe média parece satisfeita com as reformas que asseguram que ela não será atingida pelo que vem de baixo.
• Vocês estão sensíveis ao fato de que os mais pobres estão esmagados nessa estrutura maligna? Vocês estão sensíveis à dor alheia? Alguns saíram hoje cedo sem saber se conseguirão trazer o almoço das crianças. Desnorteados, perambulam pelas ruas da cidade acompanhados apenas pela incerteza!
• Gente querida que começa a acreditar que foi abandonada por Deus. Carregam a culpa e justificam, assim, os seus sofrimentos. Resignados, vão à igreja ouvir os testemunhos dos bem-sucedidos. Tudo que precisavam ser, mas não conseguem; tudo que gostariam de conquistar, mas não merecem.
• Concluem que Deus somou os seus pecados e agora desconta mensalmente, com juros, nas suas contas. Acham que estão cansados, porque merecem. Deus juntou os seus pecados e colocou sobre os seus ombros. Exaustos, carregam os próprios fardos.
• Deus fez pouco caso do Estado Democrático de Direito e do poder coercitivo típico desse modelo político? Agora, as forças militares estão autorizadas a “meter o dedo” para matar os moços recalcitrantes. Diante da revolta da “opinião pública” com a segurança pública, chegou o tempo de esmagar os marginais como se esmagam as uvas no lagar. Só que nesse caso não escorrerá o vinho, mas o sangue, mesmo.
• Tenho andado triste por causa dessas coisas. Choro sem consolo. Noutro dia chorei dando aula. Meu sono está descontrolado. Muita gente assustada com os discursos que hoje proliferam no Brasil. Amigos amargurados com sacerdotes que estão aplicados em garantir apenas os seus interesses. Absolutamente confortáveis no altar, com as suas vestes brancas, como se tudo estivesse dentro da normalidade.
• O brasileiro fala do Brasil com nojo. Parcela da classe média usa como fator de distinção o discurso de ódio que deprecia o Brasil e os brasileiros. Os jovens planejam suas carreiras no exterior. Quanto mais cedo conseguirem migrar, mais bem-sucedidos serão. O Brasil é para eles como se fosse algo superado.
“A minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo que fizemos” ainda teremos que lidar com a agenda política dos nossos pais: ditadores, torturadores, medo, mordaça, execuções sumárias, falta de transparência, enfim, cativeiro. A onda reacionária no Brasil chegou com a força destruidora de um tsunami.
• Eu e meus amigos estamos procurando emprego como há vinte anos. Envelhecemos, como vocês podem ver, desde a última semana. Não fugimos à luta nem nos submetemos à carreira eclesiástica. Há um preço a pagar e sabíamos que a liberdade custa caro. Senhor, restaura-nos as forças! Às vezes parece que não vou suportar tamanho peso!
Olha a minha angústia, Senhor. Minha alma está turbada. A dor é tão grande que parece insuportável. Ouço a voz do opressor na boca dos oprimidos. Absolutamente fascinados com o andar de cima do cativeiro. Sinto raiva do opressor e do oprimido nesse conluio dos infernos. Choro por mim e por eles. Nossa decadência como povo compromete a celebração das nossas conquistas pessoais.
• Ó, Deus, ouve os meus gemidos, suspiros e palavrões! Atormenta-me essa onda insana. Chateia-me a postura daqueles que se escondem num momento desses por puro egoísmo. Habituaram-se a fazer bons contratos no lado vencedor, seja lá ele qual for. Analistas que sob o argumento da neutralidade científica fingem-se acima das disputas passionais como se estivéssemos numa brincadeira de gente grande. Quanto a mim, Senhor, saiba que eu não vou me adequar nunca. Pudesse ter o Jeremias aqui perto para ser fortalecido com as lágrimas dele.
• Eu não paro de gemer e às vezes fico com medo de a minha alma adoecer. Se corro na rua e se escrevo, é para não enlouquecer. Sei bem que sou um sujeito contraditório cheio de defeitos. Não quero transformar minhas carências e ideias em voz de autoridade profética. Senhor, escuta a minha oração! Caso observe motivações mesquinhas ou raiz de amargura no meu coração, arranca, meu Deus. Neste tempo em que o meu povo está tão transtornado, que não me falte o discernimento para um coração ensinável!
* Doutor em Ciência Política (Iuperj) e doutorando em Teologia (PUC-RJ)