Ruas, largos, praças: partes de uma cidade. Logradouro: palavra muito usada em urbanismo e que vem do verbo lograr: alcançar.
Com ela, alcança-se aonde se vai, usufrui-se de ali estar, tem-se como referência, ao virar endereço. O espaço é público.
É também registro da memória coletiva e palco de uma disputa simbólica. Basta lembrar que na liça eleitoral, o maior troféu, quebrado a murros ou multiplicado em milhares, foi a placa de uma rua que sequer existe: Marielle Franco.
A Rua Dois de Dezembro poderia ser alusiva ao Dia Nacional do Samba, mas comemora o aniversário de Pedro II. Os republicanos, uma vez instalados, mudaram seu nome para Cristóvão Colombo, mas, pelo visto, a monarquia ainda era forte entre a plebe e a rua recria a monarquia.
Monumentos erguem-se e derrubam-se, quando, em reviravoltas políticas, acertam-se as contas. Nem sempre rolam cabeças, mas despejam-se estátuas equestres ou simples bustos: é preciso purgar regimes e símbolos.
Sobram as ironias. Imagino que o único lugar em que Stalin sobrevive é em Paris, onde a Batalha de Stalingrado virou praça. Sempre é preciso sagrar vencedores.
“Nunca existiu Companhia Bananeira” ou “Nunca estivemos em guerra com a Oceania”, frases de Garcia Marques e George Orwell que denunciam que fatos são varridos das mentes. Em Macondo, em 1984 ou 1968.
Há 50 anos, durante um protesto estudantil, aqui no Rio, 28 pessoas foram mortas pela repressão policial. Foi no dia 21 de junho.
Durante 50 anos não se falou nisso. Em qualquer outra parte do mundo haveria um monumento aos mortos daquela data. Mas aqui, se boa parte desse período vivemos sob a tutela de quem protagonizou o massacre, foi fácil fazer com que na vida, imitando a arte, nos levassem a descrer de sua acontecência.
Maior prova da eficácia do projeto é que eu próprio, que vivenciei os fatos, depois de certo tempo, tamanho silêncio, passei a achar que eu os inventara.
Não era possível que tivessem ocorrido, apesar do período rigoroso, registrado como brando, obrigando a que oximoros saltem dos livros de gramática, e ditadura se apresente macia, mesmo com a polícia matando no atacado, no centro da cidade.
Mas eis que me deparo, aqui no JB, com a reportagem de Celina Côrtes, relembrando que o massacre aconteceu. Como existiu a Companhia Bananeira, de “Cem Anos de Solidão”, mas nem se precisa de tantos: 50 já são suficientes, quando a arma usada é o esquecimento.
Sou, et alli, um profissional que tem a memória como matéria-prima e sua preservação como produto. Recuperamos pedaços construídos, prédios, partes de cidades que sobrevivem para contar história. É para isso que servem. Para ajudar a não esquecer.
Mas são os vencedores que determinam os significados! Mesmo nós esquecemos da face política que reveste o Patrimônio Histórico, ainda que simbólica. Não existe a Rua 21 de Junho. Nem qualquer marco que o celebre. Que impeça que se duvide de que tenha ocorrido.
Há 50 anos, em 1968, havia 50 anos que terminara a Primeira Guerra Mundial. Para nós, Kaiser ou Imperador da Áustria-Hungria eram apenas velhas figuras pitorescas do século anterior, com seus capacetes pontudos.
Na última sexta-feira me vejo em uma passeata na Av. Rio Branco, na qual a larga maioria era de estudantes, embora isso fosse um detalhe, pois moços e velhos estávamos ali para impedir que as figuras de 50 anos atrás, amnesiadas e atuais, voltassem. Talvez os fantasmas dos 28 mortos daquela avenida também estivessem conosco, dizendo mais ou menos as mesmas coisas: liberdade, ditadura nunca mais, relativizando o tempo, fazendo parecer com que 50 anos e o século anterior virassem agora, pois há sempre um ele para se dizer não.
Talvez se existisse a Rua 21 de Junho, seus fantasmas teriam sido enterrados, desobstruindo-se a Av. Central, aliás Rio Branco, mas nunca esquecidos.
* Arquiteto; urbanista, DSc