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Brumadinho e a justiça histórica

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Brumadinho trouxe a sensação de farsa e tragédia anunciada. Todos perguntam: como pode esse absurdo acontecer novamente? Passados mais de três anos de Mariana, os fantasmas da mineração batem à porta de nossa memória abissal. Ela que forja o esquecimento da falsa paz sem voz na poltrona de domingo, como cantava Marcelo Yuka.

São muitos os corpos mortos mutilados, alguns desaparecidos para sempre, tal como o Pico do Cauê que nos fala Drummond de sua Itabira. O poeta ensinava: o tempo só volta no mundo da imaginação.

Mas a mineração extrativista usurpa riquezas e planta sementes de um amanhã perdido. E ele chegou. Dessa vez os atingidos não foram apenas as periferias invisibilizadas, as pessoas “esquecíveis”, trabalhadores terceirizados, camponeses, pobres, negros e indígenas. A novidade é que agora se trata do maior desastre industrial do país em termos de mortes imediatas de trabalhadores: os principais atingidos foram os diretos da Vale. Sinal dos tempos: a flexibilização trabalhista elimina direitos e torna mais barato o valor da vida para reduzir o “custo Brasil”. A lama também alcançou e matou donos e hóspedes da bela pousada que ficava a 15 km de Inhotim, e a poluição no rio Paraopeba ruma para o já sofrido rio São Francisco.

As fortes imagens lembram filmes catastróficos de Hollywood. Mas há aqui uma inversão sutil e cruel: onde estão linhas que separam ficção e realidade, verdade e mentira, responsabilidade e negligência, direito e exclusão? Como semear futuros não como farsa e alienação, mas como consciência e reconstrução? Eis nossa difícil tarefa: reverter a cegueira pós-desastre, a normalidade anormal e desumana que despreza, não pensa e não sente. Reconstruir a memória do passado para rever o presente e reinventar o futuro.

Enfrentar fantasmas significa retirar véus para alcançar os inéditos viáveis que nos falava Paulo Freire. Para isso não podemos ficar anestesiados na poltrona do esquecimento e passivamente escutar vozes “esclarecidas” com suas “verdades” técnico-científicas, econômicas ou mesmo religiosas. Elas só nos interessam na medida em que nos servirem para o difícil trabalho de entrar e sair da lama que estamos atolados e alcançou a alma da nação.

Precisamos responder questões cruciais: existe mineração justa e sustentável, qual seria? De forma semelhante, podem ser sustentáveis e justos o agronegócio com suas monoculturas venenosas, o petróleo que alimenta a tragédia climática e as grandes hidrelétricas que destroem os rios sagrados dos povos indígenas? Qual Estado e quais economias precisamos para atuar na defesa da dignidade humana, dos trabalhadores, da saúde das populações e do meio ambiente equilibrado? Como construir partidos políticos e instituições mais independentes e atuantes frente às grandes corporações, seja no nível municipal, estadual ou federal? Alguém tem dúvida que, se não respondermos tais questões, novos desastres retornarão?

O trágico desafio é o da democracia e da ética. A lama que corre reflete injustiças históricas que nos impedem alcançar outras justiças, como a social, a sanitária, a ambiental e a cognitiva da qual nos fala o sociólogo Boaventura de Sousa Santos. Precisamos passar a limpo a escravidão colonial, as desigualdades sociais, os racismos e violências contra pobres, negros, trabalhadores, mulheres e indígenas. Para isso, além de cientistas, técnicos, políticos e gestores bem intencionados para entender porque as barragens rompem e matam, que venham sábios, poetas, guerreiras e movimentos sociais. Todos nos ajudam a alargar nossas percepções, a compreender e reconhecer as lutas fundamentais, a despertar nossa humanidade frente às tragédias do progresso. Sem isso de nada nos servirão promessas de soluções técnicas definitivas. No máximo apazíguam-nos na poltrona de domingo.

* Pesquisador da Ensp/Fiocruz