Na semana passada, mais uma tentativa de feminicídio engrossou as estatísticas brasileiras. A promessa do encontro romântico findou em quatro horas de espancamento. Paredes manchadas de sangue imprimiram em vermelho a violência da noite. A face deformada pelos socos berra brutalidade e estapeia quem a olha a qualquer hora do dia. A bela moça foi despedaçada como um rosto estilhaçado de Picasso. Quebrado em mil pedaços, reflete, tal qual um espelho em que todas as moças poderiam se enxergar, a dor que vem de dentro. Distorcido. Fragmentado. Dolorido pela traição de quem adormeceu em braços doces e despertou esmurrada de modo atroz.
Nada justifica tamanha crueldade, mas é possível compreendê-la em certa medida. A atitude do agressor não pode ser interpretada como caso isolado. É fruto e expressão de uma sociedade política e ideologicamente masculina, na qual a mulher ainda é vista como cidadã de segunda categoria e exposta a toda sorte de preconceitos e deturpações. A cultura que vê a mulher como ser inferior, constantemente em débito e dividida entre carreira e família, é alimentada de diferentes formas e por diversos atores sociais. Seja na falta de reconhecimento profissional, na cobrança de beleza e juventude eternas, ou, mais perversamente, no estimulo à rivalidade feminina.
A representatividade da mulher na produção intelectual como um todo, e nas ciências especialmente, é também sintomática e resultado direto de misoginia histórica. Desde crianças, meninos e meninas experimentam tipos de socialização distintos e determinantes para a formação global de cada um deles. Enquanto os primeiros são incentivados a participar de jogos de ação, construção mecânica e brincadeiras que favorecem a compreensão de agrupamento, como por exemplo, os jogos em equipe; as meninas são estimuladas a brincar com bonecas, jogos de palavras e a valorizar as relações interpessoais.
Meninas costumam ser orientadas para adotar postura passiva. Enquanto meninos jogam, elas assistem. Somem-se a isto as qualidades imputadas desde cedo às mulheres, tais como ternura, impulsividade, subjetividade, ao passo que aos homens são atribuídas a racionalidade, objetividade e o poder de síntese - características essenciais para a carreira científica. A repetição continuada destes estereótipos, vivenciados desde a mais tenra idade, contribuem para desencorajar as mulheres na aventura pelo mundo das ciências, principalmente das ditas exatas, e cria a noção equivocada de que deva haver espaços de atuação profissional, que sejam masculinos ou femininos a priori.
Nas Artes, particularmente em algumas modalidades, como a pintura, as mulheres ainda são alijadas. No passado, quando driblaram os entraves e se destacaram, os registros históricos parecem ter sido adormecidos. Quem foi Sofonisba Anguissola? Grande artista da Renascença italiana, não pôde estudar anatomia e foi impedida de pintar a nudez para não ferir a moral da época. Uma das raras artistas bem sucedidas do período, hoje é pouco lembrada. Contudo, a inserção feminina é maior na área das artes, se comparada às profissões científicas. Mesmo em campos onde, por tradição, permitiu-se às mulheres transitar livremente, como a cozinha, os chefs renomados, aqueles que, em tese, elevaram a comida ao patamar de arte gastronômica, são, predominantemente, homens.
A cada duas horas uma mulher morre no Brasil, vítima de feminicídio. O crime de ódio é consequência frontal das relações desiguais de gênero, em que homens arvoram o direito de exercer poder pleno sobre as mulheres. Romper o ciclo de violência só se dará pela mudança de uma triste cultura, expressa em diversas esferas que incluem desde ações do estado aos meandros da psique feminina. Chimamanda N. Adichie, em carta a uma amiga que acabara de se tornar mãe de menina, nos lembra que ensinamos as garotas o amor ligado à doação, mas o mesmo não se diz aos garotos.
A escritora nigeriana segue perguntando: "se o amor é a coisa mais importante da vida e deve ser valorizado, porque ensinamos apenas metade do mundo a dar esse valor?". Há muito a ser feito para que a equidade entre gêneros seja, de fato, realidade. E os processos para tal envolvem diferentes âmbitos, múltiplas instâncias decisórias, implantação de medidas legais, políticas públicas educacionais, e, principalmente, transformação de hábitos que não mais podem ser perpetuados. E que os cacos se recomponham, e, tão logo, a moça de Picasso se veja num beijo dourado de Klimt...
* Mestre em Teatro e doutora em Ciências